Do RIO, João - Momento Literário Completo - PDFCOFFEE.COM (2024)

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Olavo Bilac, Coelho Netto, Julia Lopes de Almeida, Felinto de Almeida, Padre Severiano cie Rezende, Felix Pacheco, João Luso, Guimarães Passos, Lima Campos; cartas de João Ribeiro, Clovis Bevilacqua, Sylvio Romero, Raymundo Correia, Medeiros e Albuquerque, Garcia Redondo, Frota Pessoa, Mario Pederneiras, Luiz Edmundo, Curvello de Mendonça, Nestor Victor, Silva Ramos, Arthur Orlando Souza Bandeira, Ioglez de Souza, Aííonso Celso, Elysio de Carvalho, etc., etc.

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DO MESMO AUCTOR Ao A

religiões no

Rio. 7a edição.

ALMA ENCANTADORA DAS

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Jornal de V erão (Chronica clc Pctropolis). D entro da N oite (contos) a apparecer. E ra uma vez ... (contos para crança de collaho-

ração com Viriato Correia). TRADUÇÕES

S alomé . poema dramatico de Oscar Wilde. P ensamentos para a mocidade de Oscar Wilde. O L eque O scar W

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de Oscar Wilde. por Harborough Sherard.

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THEATRO

episodio dramatico em 1 acto, representado pela Ia vez, na noite de 8 de Março de 1907, no Recreio Dramatico,

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H. GARNIER, LIVREIRO-EDITOR RUA DO OUVIDOR, 71 6, RUE DES SAINTS-PERES, (> RIO DE JANEIRO

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JOAO DO RIO

QUARENTA

RESPOSTAS

Olavo Bilac, Coelho Netto, Julia Lopes de Almeida, Felinto de Almeida, Padre Severiano de Rezende, Felix Pacheco, João Luso, Guimarães Passos, Lima Campos; cartas deJoão Ribeiro, Clovis Bevilacqu Romero, Raymundo Correia, Medeiros e Albuquerque, Garcia Redondo, Frota Pessoa, Mario Pederneiras, Luiz Edmundo, Curvello de Mendonça, Nestor Victor, Silva Ramos, Arthur Orlando, Souza Bandeira, Inglez de Souza, Affonso Celso, Elysio de Carvalho, etc., etc.

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NOTA

Este inquérito, quando incompletamente pu­ blicado pela « Gazeta de Noticias », obteve grande éxito — tão grande que os principaes jornaes dos principaes Estados não duvidaram em applical-o ás respectivas literaturas. O Mo­ mento Literario foi tambem, em todo o Brasil, o Momento dos Inquéritos Literarios. Essa propriedade de éxito bastaria para edital-o sí não tivesse a accrescel-a o mérito de reu­ nir mais de quarenta respostas de mentalidades illustres sobre problemas de arte, de literatura e da vida intellectual do Brasil. O E ditor .

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A MEDEIROS E ALBUQUERQUE.

Permitta V. que eu dedique ao jornalista raro, ao talento de escol e ao amigo bondoso este trabalho, que tanto lhe deve em conse­ lhos e sympathia. João

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—0 publico quer uma nova curiosidade. As multidões meridionaes são mais ou menos ner­ vosas. A curiosidade, o appetite de saber, de estar informado, de ser conhecedor são os pri­ meiros symptomas da agitação e da nevrose. Ha da parte do publico uma curiosidade malsã, quasi excessiva. Não se quer conhecer as obras, prefere-se indagar a vida dos autores. Preci­ samos saber? Remontamos logo ás origens, desventramos os idolos, vivemos com elle. A curiosidade é hoje uma ancia... Ora, o jorna­ lismo é o pai dessa nevrose, porque transfor­ mou a critica e fez a reportagem. Uma e outra fundiram-se :—ha neste momento a terrivel reportagem experimental. Foram-se os tempos das variações eruditas sobre livros alheios e já vão cahindo no silencio das bibliothecas as theorias estheticas que ás suas leis subordina­ vam obras alheias, esquecendo completamente os autores. Sainte-Beuve só é conhecido das

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gerações novas porque escreveu alguns versos e foi amante de Mme. Victor Hugo. Talvez ape­ nas delle se recordem por ter essa senhora esquecido o gigante para amar o zoilo. Quem vos falia hoje, a serio, de Schlegel, de Hegel, ou mesmo do pobre Hennequin ? A critica aclual é a informação e a reportagem. Ha alguns annos, Anatole France dizia : — « A critica é como a philosophia, e a historia uma especie de romance para uso dos espíritos avisados e curiosos. Ora, todo o romance no fundo é uma auto-biographia, e o bom critico é aquelle que conta as aventuras da própria alma entre as obras primas. » Actualmente, para o grande publico, já não é isso. Sí o romance, desde Balzac, outra cousa não foi senão a reportagem, genial ou não, da moral e dos costumes, a cri­ tica é a reportagem dos autores. Só dominam hoje os que vão ao local, indagam, vêm e escre­ vem com o documento ao lado. A critica passou a ser uma consulta experimental, como a fazem Brisson e lluret, e eu posso assegurar que tenho uma impressão muito mais justa e exacta de Zola ou de Rostand, quando Brisson os narra numa das suas entrevistas, que lendo toda a panegyria e todos os insultos de que o Cyrano e a Terre tenham sido causa. Foi-se o tempo, meu amigo, em que Diogo

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de Payva, num estylo pelos puristas conside­ rado perfeito, aconselhava ás mulheres o não olhar para os homens moralisados. Hqj e tanto olham as mulheres como os homens, e a repor­ tagem, para que essa moralidade tenha o valor das verdades consagradas, acompanha os mo­ ralisados,' vai-lhes á casa e com elles almoça. O 9 E o único meio do mundo acreditar na pureza. Estas palavras, abundantemente diffusas e paradoxaes, dizia-m’as ha cerca de mez, um homem muito sério e muito grave. Eu bati ner­ voso com as duas mãos nos bracos da cadeira e indaguei : —Mas que quer o publico ? Qual é essa nova curiosidade ? —A curiosidade do verão. —Uma curiosidade que desapparecerá como os figos e as mangas? —Sim, não ria. Todo o povo razoavelmente constituido tem duas curiosidades intermitien­ tes e de ordem extra-pratica :—saber em que deuses crémos seus prophetas e o que realmente pensam e são os seus pensadores e os seus ar­ tistas. Estas curiosidades só apparecem quando a Gamara fecha. A imprensa, que fala de toda a gente, só nâo falou ainda dos literatos. En­ tretanto nos somos um paiz de poetas! Em cada esquina encontra-se uma escola de arte, em

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cada café corre desabrido esse processo epicamente nacional da sóva literaria, no interior das livrarias fervilham as novas escolas de arte. Gomo os homens variam e os livros não são lidos, oh! senhor Deus! ler todos esses vo­ lumes!—seria interessante fixar o que pensam ou o que não pensam os caros idolos da nossa arte. — ídolos ? — O homem que escreve é sempre um idolo. Mesmo quando escreve mal, o que não é raro. Quando alguém se destina a ser julgado, póde ter a certeza de ser pelo menos o culto de uma alma. O tom sentencioso do meu venerável amigo comecava a irritar e a convencer. * Elle, porém, continuava animado. — Não se pode imaginar a admiração e o culto que se devota a os homens de lettras nossos. Eu conheci um estudante que acompanhava o Coelho Netto de longe e estragou com um pince-nez gráo 7 os seus olhos sãos, só porque o Netto usava gráo 7. São innumeras as pessoas que recusam a apresentação de Machado de Assis porque estão convencidas da impossibi­ lidade de balbuciar uma palavra diante do Mes­ tre, e muito homem fino conheço eu colleccionando tudo quanto escreve Olavo Bilac...

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Quer ver você a admiração? Vá a qualquer theatro onde esteja o Arthur Azevedo. Basta que elle pare um momento para que em torno comece a crescer a onda dos espectadores no desejo de ouvir as palavras que, com o seu ar de Buddha razoavel, Arthur murmura pachor­ rentamente. Imagine sí cada uma dessas creaturas se resolver a contar, no silencio do gabinete, as suas origens literarias, a sua for­ mação, as preferencias e principalmente o que julga do momento... Seria o documento, a psycliologia dos super­ homens, o romanceiro da nossa vida de litera­ tura, e nem por isso tão novo que assustasse. A França faz o mesmo todos os annos e a Ingla­ terra e a Italia têm no genero dois livros capitaes : Books w h i c h i n f l u e e I ce miglioj'i libri italiani. — Mas a admiração restringe-se a poucos. Os outros serão ouvidos, conhecidos talvez e, quem sabe? admirados. E sempre agradavel ouvir a historia de um homem, principalmente quando é curta. De resto, você vai fazer a historia do momento literario. E preciso indagar a todos : parnasianos, lyricos, decadentes, clás­ sicos, naturalistas, sociologos, occultistas, anarchistas, impassiveis, humoristas, symbolistas, nephelibatas... 9

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—Aínda ha disso? — Ha, ha de tudo. Cada um desses homens dirá o que foi, o que é, o que pensa do futuro. Cada um desses homens julgará os outros, e, de súbito, mergulhado no circulo das vaidades, ouvirá você os bons, os coléricos, os indifferentes, os irónicos, os altivos, os vagos, os mysticos, debatendo-se no turbilhão das theorias d’arte. Eu seguia fascinado o mysterio visionador do conselho. O meu amigo parou. — Talvez exaggere. Em todo o caso ha um resultado pratico: o Brasil saberá emfim quaes as tendencias actuaes da sua mentalidade e o publico ouvirá a curiosa historia das formações + literarias, tão cheias sempre de nostalgias e de encantos. / — Qual!E impossivel! Não tenho forças e tenho medo. Até agora convivi apenas com os crentes, que são simples e querem convencer. Os literatos, ao contrario, são scepticos e superiores. Que me dirão elles? Mephistophelicamente o meu amigo esticou o dedo: —Sei lá ! Talvez alguns desaforos. Quando, entretanto, encontrares a má vontade na pelle de um grande homem, corre ao mais novo dos novos e indaga a sua opinião. Ficas compensado

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e fica o Brasil com a idéa geral da classe pen­ sante. Estava quasi aconselhando a alternativa entre a Academia e os collegios equiparados. Nesta mesma noite, os dous, no silencio de sua alta bibliotheca, resolvemos a maneira do inquérito :—a resposta por carta para os que estão fóra do Rio ou são muito reservados, e a entrevista para os outros. O meu venerável amigo, pegando a sua penna venerável, lançou no papel as seguintes perguntas do questioná­ rio, emquaiito eu, humilde, ia lembrando nomes e endereços: Para sua formação literaria quaes os an­ dores que mais contribuiram — Das suas obras qual a que prefere ? Especificando mais ainda: quaes, dentre os seus trabalhos, as scenas ou capítulos, quaes os contos, quaes as poesias que prefere ? — Lembrando separadamente a prosa e cl poesia contemporâneas, parece-lhe que no mo­ mento actual, no Brasil, atravessamos um pe­ riodo estacionario, ha novas escolas [romance social, poesia de acção, etc.,) ou ha a luta entre antigas e modernas? Neste ultimo caso quaes são ellas ?Quaes os escriptores contemporâneos que as representam ? Qual a que julga destinada a predominar ? — 0 desenvolvimento dos centros-literarios ' O

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dos Estados tenderá a crear literaturas á parte ? — Vamos afinal vero que somos! bradava elle, rindo da minha physionomia agitada. De repente, porém, parou. — Falta alguma cousa ao questionário, falta a pergunta capital, em torno da qual toda a lite­ ratura gyra, falta a pergunta isoladora das iro­ nias directas ! —Qual ? Não respondeu. Curvou-se, e numa letlra miuda escreveu : O jornalismo, especialmente no Brasil, é um factor bom ou máopara a arte literaria ? No dia seguinte, logo pela manhã, mandava para o correio mais de cem cartas. Tinha mer­ gulhado de todo na literatura...

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A casa do poeta é de uma elegancia delicada e sóbria. Ao entrar no jardim, que é como um paiz de aromas, cheio de rosas e jasmins, ouvindo ao longe o vago anceio do oceano, eu levava n’alma um certo temor. Eram oito horas da manhã, apenas oito horas. A rua parecia acor­ dar naquelle instante, os transeuntes passavam com o ar de quem ainda tem somno, e o proprio sói, muito frio e formoso, parecia bocejar no lento adelgaçar das névoas. O ^ — Só muito cedo encontrar-me-ás em casa, dissera elle, e eu mesmo sabia que o cantor do Caçador de Esmeraldas acorda ás 5 da madruÒ gada, escreve até ás dez, sahe e não recolhe sínão depois da meia noite, porque o entris­ tece ficar num gabinete sem outra alma, á luz dos bicos de gaz. Quando, porém, ia tocar o timbre de um velho bronze, o meu receio desappareceu. Estavam as portas da sala abertas e eu via Bilac curvado sobre a mesa a escrever. i

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—Póde -se importunar? —O’ ave madrugadora! Tu por aqui? Ergueu-se com a sua aristocratica distincção. Estava todo vestido de linho branco, a camisa alva com punhos e collarinhos duros. —Aposto que vens vêr os meus cartões postaes? Eu olhava a sala onde ha tanto tempo mora a Musa perfeita. As paredes desapparecem cheias de télas assignadas por grandes nomes, kakémonos de Japão, colchas de seda côr doiro velho. As janellas deixam vêr o céo, a rua e as arvores entre cortinas côr de leite e sanefas de velludo côr de mosto. Do tecto pende uma antiga tapeçaria franceza, a um canto um paravento de laca parece guardar mysterios no bricà-bracào mobiliário—cadeiras de varias épocas, poltronas, estantes de rodizios, guéridons, divans, dois vastos divans turcos, largos como alcovas... Ao centro a mesa em que escreve o poeta, muito limpa e quasi muito pequena, de canella preta, encimada por um ventilador. Os meus olhos repousam nos , nas jarras de porcellana cheias de flores frescas; a alma sente uma alegre impressão de confortável. O poeta faz-me sentar. —Oito horas já? Ha não sei quantas escrevo eu. — Versos ? —Oh! não,meu amigo, nem versos, nem chronicas—livros para crianças, apenas isso que é

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tudo. Sí fosse possível, eu me centuplicaria para diífundir a instrucção, para convencer os governos da necessidade de crear escolas, para demonstrar aos que sabem lêr que o mal do Brasil é antes de tudo o mal de ser analphabeto. Talvez sejam idéas de quem começa a en­ velhecer, mas eu consagro todo o meu enthusiasmo—o enthusiasmo que é a vLda—a este sonho irrealizável. — Basta o enthusiasmo pelo irrealizável para que um homem seja perfeito, já disse Barrés. Bilac sorriu. —Mas então não queres lêr decididamente os pensamentos dos quarenta membros da Aca­ demia Franceza ? —Eu venho para coisas muito mais graves. —Tenho que ha na vida coisas que se dizem mas não se escrevem, coisas que só se escre­ vem e outras que nem se escrevem nem se dizem mas apenas se pensam. Seria feliz sí me viesses perguntar aquella, que sem me entris­ tecer nem entristecer aos outros, pudesse ser pensada, faladae escripta. E entretanto difíicil... Eu ouvia-o embevecido. A originalidade desse homem reside na sua sensibilidade extrema e sorridente, na sua impeccabilidade, nessa do­ çura como que rhythmica que harmonisa os seus períodos e o acompanha na vida. Bilac chegou á perfeição—é sagrado. Não ha quem

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não o admire, não ha quem não o louve. As fadas, que são quasi uma verdade, fizeram da sua existencia uma symphonia deliciosa, e como o seu talento não tem desfallecimentos e a sua actividade é sempre fecunda, a admiração se perpetua. É o poeta da cidade como Catullo o era de Roma e como Apuléo o era de Carthago. Todos o conhecem e todos o respeitam. Os editores vendem annualmente quatro mil exem­ plares do seu livro de versos, reaíisando o que até então era o impossível. Onde vá, o louvor acompanha-o. A cidade ama-o. Nenhum poeta contemporâneo teve o destino luminoso de em­ polgar exclusivamente a admiração. Elle é o pontífice dos artistas e dos que o não são. íla homens que guardam em cofres tudo quanto tem escripto de esparso na sua múltipla collaboração jornalística e não ha um dia em que peio menos não receba dos confins da provincia ou dos bairros aristocráticos meiaduziade cartas chamando-o de admiravel. E nunca a sua tunica branca teve uma ruga desgraciosa, nunca nos seus periodos a elegancia deixou de brilhar. Quando escreve, osjornaes augmentara a tiragem com as suas chronicas, e o seu estylo impeccavel aureola de sympathia todos os assumptos ; quando fala, as suas palavras admiráveis, ta­ lhadas como em mármore e diamante, lembram os jardins de Academus e as prosas sabias do cáes de Alexandria, no tempo dos Ptolomeus.

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E todos sentem a fascinação do encanto—as turbas confusas e os homens intelligentes. E’ o portador do espirito da Ilellade. No portal da sua morada bem se podia gravar o mysterioso enigma da Anthologia :— « Nasci no bosque sagrado e sou feito de ferro. Torneime o secreto depositário das musas e quando falo, interprete e confidente unico, resôa o bronze eternamente. » E, entretanto, lia por vezes no seu sorriso uma irônica amargura, na sua voz, que se véla, a secreta tristeza de quem está resignado a não dizer grandes verdades necessárias, e na sua alma, destinada á acclamação, uma delicadeza, uma modéstia infinita. Dois escriptores elle os lê diariamente, ou pela manhã antes de comecar a trabalhar, ou á noite antes de dormir— Renan e Cervantes. A vida fel-o vestir os impetos e a immensa paixãolyrica no burel de uma suave ironia. Quem o lê pensa em Luciano de Samosata, no ridículo do heroe manchego, no travo das phantasias desfeitas. Mas, de raro em raro, surgem, como a reivindicação das idéas generosas, as tristes e delicadas imprecações da sua prosa, e em conversa muita vez quando todos riem, um doloroso suspiro de cansaço e tédio passa no seulabio, de todos despercebido. E é ainda essa alma exquisita que córa e se con­ funde, quando pela millesima vez numa tarde al­ guém se lembra de dizer que o acha incomparável. o

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Talvez, por isso, o poeta sensual dos amo­ res immensos, o vate embevecido nas vozes das estrellas, aquelle que durante vinte annos dera intenções e idéas á natureza e commentára com um piparote sceptico as acções dos homens, curvou-se um dia para a vermina com o ful­ gor do seu espirito luminoso e resolveu protegel-a. Bilac hoje é um apostolo-socialista prégando a instrucção. Todos os problemas da vidaelle os pode enca­ rar como Gapus os trata nas suas peças. A instruccão das críancas e o bem dos miseraveis preoccupam-no sériamente. Eu o ia inter­ romper na composição de um livro para per­ guntar a sua opinião sobre o estado da litera­ tura brasileira e o papel do jornalismo para com essa mesma literatura. Elle falou-me com urna certa amargura, ligando as minhas pergun­ tas ao seu ideal. — Que queres tu, meu amigo? Nós nunca tivemos propriamente uma literatura. Temos imitações, copias, reflexos. Onde o escriptor que não recorde outro escriptor extrangeiro, onde a escola que seja nossa ? Eu amo entre os poetas brasileiros Gonçalves Dias e Alberto de Oliveira, a quem copiei muito em criança, mas não poderei garantir que elles não sejam pro­ ductos de outro meio. Ha de resto explicações para o facto. Somos uma raça em formação, na qual lutam pela supremacia diversos elementos O

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ethnicos. Não póde haver uma literatura origi­ nal, sem que a raça esteja formada, e já é pro­ digiosa a nossa intelligencia, que consegue ser esse reflexo superior e se faz representativa do espirito latino na America. Ah! a nossa intelligencia ! E possivel atacar, espezinhar, pulve­ rizar de ridiculo tudo o que constitue o Bra­ sil, a sua civiliacão e o esforço dos seus filhos. Esses ataques são em geral feitos por brasilei­ ros. Duas coisas porém ficam acima dos máos conceitos :—a belleza da terra e o espirito que a habita, o encanto da natureza e a clara intel­ ligencia assimiladora dos homens. Os commerciantes, os artistas em , os humildes e os notáveis levam d’aqui a impressão immorredoira de que não ha paiz mais aberto a todas as ideas generosas, mais espiritualmente ironico. Poderiamos accrescentar : — nem mais indolen­ te. Mas não basta haver talentos e bellos livros para que haja uma literatura. Esta opinião tal­ vez não seja uma grande novidade, mas é ver­ dadeira. Nós nos regulamos pela França. A França não tem agora lutas de escola, nós também não; a França tem alguns moços extravagantes, nós também; ha uma tenden­ cia mais forte, a tendencia humanitaria, nós comecamos afazer livros socialistas. Esta ultima corrente arrasta, no mundo, todos quantos se apercebem da angustia dos pobres e o soífrimento dos humildes. Um artista sente mais '

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as dóres terrenas que cem homens vulgares, os poetas são como o echo sonoro do verso de Hugo, entre o céo e a terra, para transmittir aos deuses os queixumes dos mortaes... A Arte não é, como ainda querem alguns so­ nhadores ingenuos, uma aspiração e um trabalho á parte, sem ligação com as outras preoccupações da existencia. Todas as preoccupações humanas se enfeixam e misturam de modo inse­ parável. As torres de ouro e marfim, em que os artistas se fechavam, ruíram desmoronadas. A Arte de hoje é aberta e sujeita a todas as influen­ cias do meio e do tempo : para ser a mais bella representação da vida, ella tem de ouvir e guar­ dar todos os gritos, todas as queixas, todas as lamentações do rebanho humano. Sómente um louco,—ou um egoísta monstruoso,—poderá vi­ ver e trabalhar comsigo mesmo, trancado ásete chaves dentro do seu sonho, indiíferente a quan­ to se passa, cá fóra, no campo vasto em que as paixões lutam e morrem, em que anceiam as ambições e choram os desesperos, em que se decidem os destinos dos povos e das raças... Uma revista, que se fundasse, no Brasil, para exclusivamente cuidar de cousas de Arte, se­ ria absurda. A Arte é a cupola que coroa o edificio da civilisação : e só pode ter arte o povo que já é « povo », que já sahiu triumphante de todas as provações em que se apura e define o caracter das nacionalidades. O

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O que urge é comprehender isso, e é aprovei­ tar alicão d o s factos. Nós não temos unicamente, diante de nós, o problema do saneamento e do povoamento. Com o saneamento apenas,— livrar-nos-emos das epidemias que os mosqui­ tos, os ratos, os microbios transmittem de corpo a corpo,—mas deixaremos, intacta e tremenda, pairando sobre nós, a ameaça das epidemias moraes, que depauperam o organismo social, e o conduzem á indisciplina, á inconsciencia e á escravidão. Tratando apenas do povoamento, feito ao acaso das levas de immigração, sem fundar uma escola em cada novo núcleo de povoadores,—conseguiremos sómente augmen­ tar e dilatar o imperio da ignorancia e da irresponsabilidade. O problema que tem de ser resolvido, junta­ mente comesses dois, é o da instrucção. E o que dóe, o que desespera, é que toda a gente culta do Brasil tem a consciencia d’isto, e que, ba mais de um século, esta verdade, annunciada, proclamada, escripta, em todas as tribunas, em todos os livros, em todos os jornaes, ainda não achou governo que a servisse em terreno pratico. Houve um silencio. 0 poeta falava como um philosopho e no seu labio a verdade vibrava. Timidamente comecei umaphrase, que não che­ gava a ser pergunta : —Os Estados procuram crear literaturas á í. O

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parte. Ainda ha pouco, logo após a publicação das minhas primeiras entrevistas sobre o mo­ mento literário, todos os Estados agitaram-se, S. Paulo, Rio Grande, Pernambuco... — E dividir o que ainda não se póde divi­ dir. Não ha talentos do Norte nem do Sul. Ha talentos brasileiros. Não posso comprehender, para não citar sínão um exemplo, em que os versos de Francisca Julia possam ser paulistas. Quanto á separação da nossa futura literatura ella se fará lentamente, como se vão formando a nossa raça e o nosso gosto, conforme as cor­ rentes mais ou menos fortes dos povos colonisadores. Talvez em 2500 existam literaturas diversas no vasto território que hoje fórma o Brasil. — E o jornalismo? Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac, tão poeta que o seu nome é um alexandrino, limpou os vidros do binoculo e disse praticamente : —O jornalismo é para todo o escriptor bra­ sileiro um grande bem. E mesmo o unico meio do escriptor se fazer lêr. O meio de acção nos falharia absolutamente se não fosse o jornal — porque o livro ainda não écoisaquese com­ pre no Brasil como uma necessidade. O jornal é um problema complexo. Nós adquirimos a pos­ sibilidade de poder falar a um certo numero de pessoas que nos desconheceriam sí não fosse a folha diaria; os proprietários de jornal vêem

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limitada, pela falta de instrucção, a tiragem das suas emprezas. Todos os jornaes do Rio não vendem, reunidos, cento e cincoenta mil exem­ plares, tiragem insignificante para qualquer diario de segunda ordem na Europa. São oito os nossos! Isso demonstra que o publico não lê — visto o prestigio representativo gosado pelo jornalista. E porque não lê ? Porque não sabe! Tenho estatisticas aterrorisadoras, phenomenaes. Era natural que decrescesse a lista dos analphabetos á medida que a população auem numero e civilização. rgrmentasse > • > Pois dá-se o contrario. Ha hoje mais um milhão de anal­ phabetos que em 1890! E digam depois que não é preciso crear escolas e diffundir a in­ strucção. Um povo não é povo emquanto não sabe lér. Admiras-te dessa minha transformação? O poeta, que ama as cigarras e os flamboyants, o sonhador, que em tudo vê a poesia, batendo-se por um grave problema social!... Ah! meu amigo! Para mim esta é a ultima etapa do aperfeiçoamento, e o jornalismo é um bem. Parou, foi até á janella, olhou o céo, que es­ curecera prenunciando chuva. Toda a sua figura transpirava sympathia harmoniosa. E, de entre as cortinas cor de leite, uma outra voz grave vibrou, cheia de melancolia : « Oh! sim, é um bem. Mas sí um moço escriptor viesse, nesse dia triste, pedir um con­ selho á minha tristeza e ao meu desconsolado O

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outono, eu lhe diria apenas : Ama a tua arte sobre todas as coisas e tem a coragem, que eu não tive, de morrer de fome para não prosti­ tuir o teu talento! »

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A primeira vez que falei a João Ribeiro da possibilidade de um inquérito a respeito do mo­ mento literário, foi á porta do Garnier, ás 3 da tarde, hora em que apparecem os literatos e os diplomatas, para a conversação de praxe. João Ribeiro estava num dos seus dias de irritação. ò Arriscaria dizer que me recebeu com tres pe­ dras na mão, sí não tivesse a certeza de que era muito maior o numero delias. Mas eu tenho para a vida uma certa quanti dade de maximas capazes de explicar e minorar os soífrimentos possíveis. Abri o sacco e li uma das sentenças deNietzsche : « Fazer planos e tomar resoluções, ahi está o que nos dá uma porção de sentimentos agradaveis. Aquelle que tiver a forca de não ser toda a vida sínão um forjador de planos será um homem feliz. Serlhe-á, porém, necessário de tempo em tempo executar um plano e então começarão as cóle­ ras e as desillusões. » O

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Guardei-me de insistir. No dia seguinte o su­ perior espirito estava mais calmo. Ghamou-me para um canto, teve a bondade de achar inter­ essante o inquérito e disse: — Vou responder. Aproveito a occasião para accentuar umas idéas... Não prometto respon­ der já, mas prometto ser sincero. Sí for a Princeza Mangalona o livro que maior influencia me tenha causado, pode ter a certeza que a ponho lá. Quarta-feira de cinzas recebia eu esta deli­ ciosa carta, em que a arte de escrever rivalisa com a fulgurancia dos conceitos : 1. Para sua formação literaria os dores que mais contribuiram ? Em termos restrictos, não posso e nem sei responder. Fui um grande ledor de folhetos, revistas e livros de todo o genero : as minhas admirações eram sempre ephemeras e precarias e logo substituidas ou augmentadas de outras novas; pratiquei, pois, um polytheismo tão nu­ meroso como o antigo; não sei dizer quem era o Zeuspitei desse Olympo, mas posso dizer quem foi o Ui'anus primitivo. Meu avô (á cuja sombra cedo recolhemos minha mãi e eu, orphãos de meu pai) tinha uma bibliotheca de cousas portuguezas; meu avô era da geração dos cartistas e franc-maçons, embirrava com padres e frades e como neocatholico adorava o Herculano e o Saldanha

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Marinho. Nem então, nem depois, participei daquellas iras ou enthusiasmos; da sua biblio­ theca o que me attrahia era uma magnifica colleccão do Panorama e a do Almanack de Lem3 brancas Luso-Brasileiro; sí a estes ajuntar o Manual Encyclopedico de Emilio Achilles Monteverde, que eu lia na escola, terá v. o genesis de todas as minhas lettras, sciencias e artes daquella quadra. Confesso que não augmentei deum ceitil todo aquelle patrimônio, e em muitas coisas o dissipei e diminui. Todas as minhas horas de lazer consumiam-se em desenhar, copiando as gravuras do , em reler a mythologia e as verdades eternas do Manual Encyclopedico; por outro lado, o Almanack de Lembranças ensinava-me a fazer charadas, e Ò as charadas ensinaram-me a fazer versos. Não se espante de que aos doze ou treze annos eu começasse a fazer versos : eu ignorava ainda a arte, sem duvida mais difficil, de os não fazer, arte que emfim, tarde e mal, aprendi. As minhas origens espirituaes, pois, são, como a social,—plebeias, rústicas e pobres, mas nunca pediram de sacco e brado pelas ruas. As minhas expansões nunca fizeram explosão que puzesse em perigo o tecto paterno : accommodaram-se no estreito ambiente domestico e supportaram a pressão do silencio externo. Resta, porém, indicar um factor singular e dos que se têm a conta de indifferentes, mas que, ao parecer, foi

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decisivo; sempre fui homem material, e, rudeza ou grosseria, sempre tudo submetti e subordi­ nei á forma, não havendo para mim substancia se não a externa, palpavel e evidente. Sou capaz de affírmar e afíirmo que me fiz poeta só e unicamente porque eu tinha então papel, esplendido, como se diz boje, para versos : eram umas aparas do Archivo Economico da Bahia, revista que meu avô assignava e cujas margens larguíssimas por supérfluas eram cor­ tadas; do bico da tesoura eu recolhia aquellas íitas brancas e lisas, que na minha mão se enro­ lavam curvas como o aço dosrelogios, esperando a desenvolução futura, nos momentos de furor e de estro. Naquellas duas pollegadas de papel a minha lettra miúda poria dextramente um alexan­ drino, mas nem de tanto havia mister, porque eu comecei pela oitava rima e pelo poema epico : a epopéa devia de ser uma ou Brasiliada (ou cousa que o valia, e agora me esquece) e era assumpto a chronica de des­ cobrimento do Brasil, que eu li no (L) e onde se contavam os amores de Ypeca, india tupinacuim,e de um portuguez da frota de Cabral. Acabo aqui a historia, porque já vou excedendo, mal a meu grado, os limites da resposta; mas (1) Creio que cie F. À. Varnhagen ; um romance historiço ; estava então na baila \V. Scott, entre os escriptores portuguezes Kebello da Silva, Herculano, etc.

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aqui tem v. mais ou menos os ductores que mais contribuiram, na formação do meu pri­ meiro e tínico poema : technica—o papel apa­ rado e o vezo da charada; sciencia e mythologia —o Manual Encyclopeclico; sujeito e desen­ volvimento—o Panorama. O resto, attribua-o v. generosamente ao meu talento. O 2. Das suas obras qual a que prefere? Obras literarias, além de um livro de versos, não as tenho; tudo quanto escrevi foram frag­ mentos, artigos de jornal, cousas esparsas e sem valia, das quaes um colchete coordenador poderá talvez fazer um misero opúsculo. Mas posso dizer á maneira de D. Francisco Manuel— « nunca me arrependi do que deixei de escre­ ver ». Escrevi, sim, e v. bem o sabe, alguns livros uteis, ou com a intenção de uteis, e em reali­ dade o foram ao menos para mim mesmo. A Brasileida perdeu-se ou eu a rasguei, sem nenhum gesto de ira; os outros terão agonia mais lenta e hão de perder-se com mais demo­ rados vagares. Francamente, não prefiro nenhum, a não ser talvez um ou outro verso, dos que compuz, menos pelo que vale e mais pelo que lembra na memoria de outros tempos. 3. Lembrando separadamente a prosa e poesia contemporâneas, parece-lhe que no mo­ mento actual, no Brasil, atravessamos um pe-

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rioclo estacionario, ha novas escolas ( romance social, poesia de acção etc.) ou ha a hita entre as antigas e as Neste m caso quaes sao ellas? quaes os escriptores conemporaneos que as representam? qual a que julga destinada a predominar? —Acho difficil responder a tanta cousa por junto e rnais do que difficil acho que seria odiosa a minha inútil franqueza. Vou ver sí me conformo á verdade sem faltar ás convenien­ cias. A’ verdade, segundo a eu entendo , já se vê. Não gosto, absolutamente não gosto dos nossos últimos poetas; falo dos últimos, recentissimos. Basta dizer que não os leio e que ainda que o quizesse não os podia ler. E digo com a maxima sinceridade que, em abrindo urna folha, prefiro ler um annuncio de leilão a um soneto. E a nossa poesia de hoje uma cousa peior que pessima, porque é sempre a mesma repetição eterna, descorada, longuíssima, das mesmas coi­ sas, é a mesma emphase chilra, destemperada, caneada como aquelle cha do Tolentino... Em bule chamado inglez Que já para pouco serve, Duas folhas lança ou tres De cansado xá que ferve Gom esta, a sétima vez.

Poder se-ia ainda continuar : De fatias nem o cheiro Etc.

JOAO RIBEIRO

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Ao menos versos destes podem ser repetidos e hão de o ser eternamente. Está-se a vér por este excesso do meu juizo que o defeito é todo meu, falha e insufficiencia da minha parte. Não é possivel que eu tenha razão. A verdade é que não sinto e não entendo, não alcanço o que querem os nossos poetas. Quer v. mais? já transpuz os limites da discreção, e numa sociedade primitiva e guerreira como esta, democrática pela força das coisas mas sem nenhuma educação liberal, e em que a regra é eliminar os discordantes, com o que disse já estou muito mal parado. Peço-lhe, sí se interessa pela minha paz de espirito, que accrescente ahi numa entrelinha : ha algumas excepções honrosas... Não succede, porém, a mesma cousa com os nossos prosadores; e ainda que eu conheça (só pela rama) umas tres das grandes literaturas européas, acho que podemos falar de escriptores nossos sem incontinencia. Sí tudo é rela­ tivo, ha descomedimento a nosso favor, e a proporção que nos convem dá muito para envaidecer-nos. Temos romancistas, críticos, jornalistas, oradores mais e melhor do que jámais tivemos. Os nossos prosadores de hoje, no Rio, escre­ vem com gosto, clareza e não raro com perfeição de fórma e outras excellencias ainda ha pouco

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tempo-não sonhadas siquer; o máo estylo pro­ vinciano, condoreiro,asiatico, sesquipedal, pedantesco, bombástico ou ridículo, aqui não acha quartel e cá se não vê mais no livro nem no iornal. (Não fallo de excepções para peior; nem a mes­ ma Athenas de Perides delias estaria exempta.) Dessa tendencia concluo que o predomínio será no Brasil o do culto da linguagem classíca; temos a doença que é o dialecto e é natural que se não poupem sacrifícios pela saúde. Faça-me justiça. Não quero dizer que nos desvelem as noites o Fr. Luiz de Souza ou o Sá de Miranda : para estes haverá obreiros modes­ tos que lhes consagrem as insomnias, trabalha­ dores incessantes e iragueiros. A tendencia para a perfeição é um instincto ingenito de todos os artistas; nunca houve guerra aos clássicos sinão depois que houve jornalismo. Os jorna­ listas com a sua technica repentina não se podem prender por esses polimentos demorados, por essas limagens preguiçosas que não podem ir por machina. Falam pro domo , quando invectivam as velharias de antanho. Mas si ha mis­ ter, porque se não ha de, até nisto, engenhar uma machina? Não é talvez diífícil e creio até que já está meio inventada. Colloquemos a questão nos seus verdadeiros termos.

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O estylo não é tanto correcção, coisa trivial, mas é perfeição, isto é :—a idéaprecisa e exacta na sua forma exacta e precisa; é o bronze vasaclo no seu molde, a prata na sua rilheira. E qual é o artista de qualquer arte e de qualquer canto do inundo, que não busca, não pesquisa e não se deixa matar por um fim supremo ? Não se trata pois de grammatica nem de grammaticões impertinentes e molestos como os da minha especie que registram e passam, e nem se offerecem como prospectos modelares á gera­ ção nova. * A escola classica que é da perfeição de forma é eterna ou antes é a mesma eternidade da com­ pleição humana; as outras têm e sempre tiveram direito á vida, mas são antes modas ephemeras, diarias, annuaes, bisonhas, e quando muito ao cabo de 3 ou 4 annos são excellencias que dege­ neraram em sensaborias, elegâncias que cada transatlântico desfaz ou recompõe... São emfim roupagens emquanto o clássico é o nú daquella nudez que o Eça queria mal velada por um manto diaphano, e outros o querem... por um capote... e^§>

Falta-me responder ainda a duas questões. Sobeja o assumpto, mas falta o papel (como vai longe aquelle bom tempo das aparas!) E tam­ bém preceito ibseniano que tudo se não ha dc

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dizer de pancada e a boa regra é deixar um pouco á collaboração dos que lêem... Das duas questões que resta responder, a uma delias— sihaverá de futuro literaturas á par nos Estados ? pode-se dizer sim ou , conforme a distancia em que se ponha aquelle futuro : sí é no infinito onde todas as antinomias se conci­ liam e asparallelas se encontram, naturalmente, mathematicamente, sim éa verdadeira resposta, e não tenho duvidas a este respeito. Ha de v., porém, permittir-me que do infinito eu não passe adeante. » E depois de chegar ao infinito não tive coragem de lhe perguntar mais nada...

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UM LAR DE ARTISTAS

« Pois eu em moca fazia versos. Ah ! não imagina com que encanto. Era como um prazer prohibido! Sentia ao mesmo tempo a delicia de os compor e o medo de que acabassem por descobril-os. Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porção de rimas... De repente, um susto. Alguém batia á porta. E eu, com a voz embargada, dando volta á chave da secretaria : já vai! já vai! A mim sempre me parecia que sí viessem a saber desses versos em casa, viria o mundo abaixo. Um dia, porém, eu estava muito entre­ tida na composição de uma historia, uma historia em verso, com descripções e diálogos, quando senti por trás de mim uma voz alegre:—Pegueite, menina! Estremeci, puz as duas mãos em cima do papel, num arranco de defesa, mas não me foi possivel. Minha irmã, adejando triumphalmente a folha e rindo a perder, bradava:—En­ O

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tão a menina faz versos? You mostral-os ao papá! Não mostres! E que mostro! —Vais fazel-o zangar commigo. Não sejas má! Ella ria, parecendo reílectir. Depois deitou a correr pelo corredor. Segui-a commovidissima. Na sala, o papá lia gravemente o Jornal cio mercio. —Papá, a Julia faz versos!—Não senhor, não lhe acredites nas falsidades!— Pois se eu os tenho aqui. Olha, toma, lè tu mesmo... Meu pai, muito serio, descançou o Ah! Deus do céo, que emoção a minha! Tinha uma grande vontade de chorar, de pedir perdão, de dizer que nunca mais faria essas cousas feias, e ao mesmo tempo um vago desejo que o pai sorrisse e achasse bom. Eile, entretanto, seve­ ramente lia. Na sua face calma não havia traco de cólera ou de approvação. Leu, tornou a ler. A folha branca crescia nas suas mãos, tomava proporções gigantescas, as proporções de um grande muro onde a minha vida acabara a ale­ gria... Então, que achas? O pai entregou os ver­ sos, pegou de novo o Jornal, sem uma palavra, e a casa voltou á quietude normal. Fiquei esma­ gada. Que fazer para apagar aquelle grande crime? No dia seguinte fomos ver a Gemma Cuniberti, lembra-se? uma criança genial. Quando sahimos do espectáculo, meu pai deu-me o seu braço.—Que achas da Gemma?— Um grande talento.— Imagina ! O Castro pediu-me O

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um artigo a respeito. Ando tão occupado agora! Mas o homem insistiu, íilha, insistiu tanto que não houve remedio. Disse-lhe : não faco eu, mas faz a Julia... Minha Nossa Senhora ! Puz-me a tremer, a tremer muito. 0 paí, esse, estava impassivel como sí estivesse a dizer cousas naturaes :— Estamos combinados, pois não? 0 promettido é devido. Fazes amanhã o artigo. Sei lá o que respondi! O certo é que não dormi toda a noite, nervosa, imaginando phrases, o começo do ar­ tigo. Pela madrugada julgava impossivel escrevel-o, tudo parecia banal ou extravagante. Mas depois do almoço, antes de sahir, o paí lem­ brou-me como se lembra a um escriptor : Vê lá, Julia, o artigo é para hoje. Tenho que o levará noite. Havia um jornal que exigia o meu tra­ balho. Era como sí o mundo se transformasse. Sentei-me. E escrevi assim o meu primeiro ar­ tigo... Só mais tarde, muito mais tarde, é que vim a saber a doce invenção de meu pai. 0 Castro nunca exigira um artigo a respeito da Gemma... » Estavamos na casa deFilinto de Almeida, um cotlage admiravel, construído entre as arvores seculares da estrada de Santa Thereza. Eu des­ cera do tramway sob uma forte carga de chuva e, enlameado, molhado, em baixo da branca es­ cada de mármore, não sabia como explicar tão lamentável estado. Filinto, porém, com um ar O

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levemente imperioso, o seu ar quando começa a sympathisar com alguém, tomara-me o chapéo e D. Julia sorria, cheia de bondade. —Entre. Ninguém vê, estamos combinados que ninguém reparará na má acção do temporal. Fòra assim que eu ousara entrar e já trinta minutos havia que ouvíamos deliciados a dona daquelle lar. A casa de Filinto fica a dez minutos da cida­ de e é como si estivesse perdida num afastado bairro. Não ha visinhos ; não ha transito pela estrada, a não ser o bond de quarto em quarto d’hora. Uma grande paz parece descer das ar­ vores. Todas as janellas estão abertas. A sala, de um largo conforto inglez, tem uma bibliotheca com os livros preferidos dos poe­ tas, um vasto bureau cheio de papeis e revistas, e uma porção de quadros com assignaturas no­ táveis de Souza Pinto, Amoedo, Parreiras... Um perpetuo scenario de apotheose divisa-se das janellas,—o scenario do Rio com o seu estrepito de sons e de côres, o tumulto das ruas estreitas, os montes escalavrados de casas, o perfume dos jardins e a enorme extensão da bahia ao fundo. Toda a cidade, estendendo por monte e valle o formigamento dos seus bairros, trechos da Gamboa, trechos centraes, torres de igrejas, a cupola da Candelaria, tectos envidraçados de frontões, altas chaminés de fabricas, palacios,

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UM JLAK DE AUTISTAS

casas miseráveis, pedaços de mar obstruídos de mastros, parece cantar o offertorio da vida. Ah ! a humanidade da grande colmeia ! Quantos soluços, quantas alegrias, quantas raças ! A chuva passara, o mormaço ia a pouco e pouco esphacelando as nuvens baixas e o pa­ norama augmentava, crescia, assombrava com leves tons de azul e oiro, um panorama epico de porto de mar latino... — Este scenario lembra-me sempre aquelle livro seu — A viuva Simões. Não imagina a im­ pressão desse trabalho na minha formação de pobre escrevinhador. Que intensidade de vida ! Sempre perguntava a mim mesmo : onde foi buscar D. Julia um typo de tão penetrante realidade? —Onde ? Mas é uma historia inventada. —Não é um livro á clef? —Não, não é, não ha trabalho meu, com excepção dos Porcos e da que não seja pura imaginação. O caso dos eu ouvi contar numa fazenda, quando ainda era solteira. Os homens do matto são em geral mãos. A narração era feita com indifferenca, como se fosse um facto commum. Horrorisou-me. A Familia Medeiros tem dous ou tres typos que guardam impressões reaes. Os outros não, são fantasia. Não imagina como me aborrece a idéa de fazer romances com historias verdadeiras. E entreO

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tanto sou victima dessa supposição. A Viuva Si­ mões é a historia de uma senhora conhecida; a Intrusa, ainda outro dia Affbnso Celso per­ guntou a meu marido sí era um romance á clef... Andava muito contente com aquelle conto : A valsa cia fome. Mandei o volume a uma das minhas primas em Lisboa e recebi logo uma carta sua. Oh! a Valsa da fome, a verdade des­ sas paginas! Ha dezeseis dias em Cascaes deuse um facto idêntico. Apenas o fim é que é di­ verso. Os rapazes levaram o pianista a jantar e elle desmaiou... Nós sorriamos. — Que se ha de fazer? Quantos ha por ahi copiando a verdade, que são sempre falsos ? D. Julia tem a luminosa faculdade de crear, e trata os personagens daphantasia como educa os seus filhos. É a vida. —Oh! os meus personagens. A’s vezes são até inconvenientes. A gente inventa-os e no meio do livro elles começam a discutir, a ter desejos, a forçar as portas da attenção. A Intrusa, por exemplo, quando a phantasiei, devia apparecer muito pouco... Uma criança loira, de uma belleza de narciso, apparece á porta. E a Margarida. As suas lon­ gas mãos no ar, chamando a mãí, são tão finas e rosadas que recordam as pétalas doschrysantliemos. D. Julia levanta-se.

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UM LA 15 DE AUTISTAS

—Vou ver o Albano, coitadinho... Já não o vejo ha muito tempo. Ficamos sós um instante. — Ha muita gente que considera D. Julia o primeiro romancista brasileiro. Filinto tem um movimento de alegria. — Pois não é? Nunca disse isso a ninguém, mas ha muito que o penso. Não era eu quem devia estarna Academia, eraella. Esse sentimento de mutua admiração é um dos encantos daquelle lar. Filinto esquece os seus versos e pensa nos romances da esposa. Levaa a certos trechos da cidade para observar o meio onde se desenvolverão as scenas futuras, é o seu primeiro leitor, ajuda-a com um respeito forte e másculo. D. Julia ama os versos do es­ poso, quer que elle continue a escrever, coor­ dena o volume prestes a entrar no prélo. E am­ bos, nessa serena amizade, feita de amor e de respeito, envolvem os filhos numa suave atmospherade bondade. —Tens no teu questionário uma pergunta a respeito da influencia do jornalismo. Nós todos somos um resultado do jornalismo. Antes da geração dominante não havia bem uma literaO * tura. O jornalismo creou a profissão, fez tra­ balhar, aclarou o espirito da lingua, deu ao Bra­ sil os seus melhores prosadores. Não é em geral um factor bom para a arte literaria, e talvez no Brasil não o seja muito em breve, mas O

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já o foi e ainda o é. Falias também das literatu­ ras á parte. Tivemos a Mina da Bahia, a Padaria do Ceará, temos os occultitas decadentes do Paraná, mas tudo isso mais ou menos desapparece ou tende a desapparecer. A literatura centralisou-se no Rio. Os rapazes de talento abandonam a província pela capital, e quando lá estão são sempre reflexos daqui. Não exis­ tirá nunca a arte regional. Mas apparece a Lucia, a outra filha, uma bellezabrasileira, morena, redondinha, acariciadora. Filinto abandona a arte regional, a , a Padaria, os decadentes, para cobril-a de beijos. — Sabes como eu a chamo ? Sinhd Midobi. Ai ! a minha filha ! E faz versos. Esta casa está perdida, fazem todos versos, são todos poetas, o menos poeta sou eu... D. Julia volta. —Então o Albano ? — Bem, está direito. Sabe o Sr. que é muito difíicil responder ao seu inquérito? Tem tanta cousa! Começa logo com uma pergunta com­ plexa a respeito de formação literaria. Tive duas creaturas que a fizeram,— meu pai e meu marido. Em solteira, meu pai dava-me livros portuguezes,— o Camillo, o Julio Diniz, Garret, Herculano. Já publicara livros quando casei, e só depois de casada é que li, por conselho de meu marido, os modernos daquelle tempo,— Zola, Flaubert, Maupassant.

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—Maupassant causou-lhe umagrancleimpres­ são. A Viuva Simões... —Eu li Maupassant depois de publicada A Viuva Simões. Sou de muito pouca leitura. Era capaz de passar a vida lendo, mas uma dona de casa não pode perder tanto tempo. E até fico nervosa quando vejo livros por abrir. Seria tão agradavel gastar a existencia lendo!... Quem entretanto cuidaria dos filhos, dos ar­ ranjos da casa ? -— Gomo faz os seus romances, D. Julia ? —Aos poucos, de vagar, com o tempo. Já não escrevo para os jornaes porque é impossível fazer chronicas, trabalhos de comecar e acabar. Idealiso o romance, faço o canevas dos primeiros capítulos, tiro uma lista dos personagens principaes, e depois, hoje algumas linhas, amanhã outras, sempre consigo acabal-o. Ha uma certa hora do dia em que as cousas ficam mais tran­ quillas. E a essa hora que escrevo, em geral depois do almoço. Digo ás meninas:—Fiquem a brincar com os bonecos que eu vou brincar um pouco com os meus. Fecho-me aqui, nesta sala, e escrevo. Mas não ha meio de esquecer a casa. Ora entra uma criada a fazer perguntas, ora é uma das crianças que chora. A’s vezes não posso absolutamente sentar-me cinco mi­ nutos, e é nestes dias que sinto uma impe­ riosa, uma irresistível vontade de escrever... —E apesar disso, diz Filinto, tem doze volu'

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mes publicados e começa a escrever um grande romance. —Oh! um livro muito difficil, apenas esbo­ çado, sobre a vida das praias, dos pescadores. D. Julia está sentada na sombra, fala dos livros e dos filhos ao mesmo tempo. Estou a crêr que os confunde e pensa nos personagens da phantasia creadora como beija os meigos fru/ ctos da sua vida. E calma, repousada, doce a sua voz, como são maternaes os gestos seus. Qual­ quer cousa de suave e de simples aureola-lhe o semblante, impõe a veneração. Uma grande sinceridade, tal que de certo, ao ouvil-a, as almas mais retrahidas lhe devem confessar a vida e pedir-lhe conselhos, como se pede aos bons e aos misericordiosos. — E que me diz das escolas em luta, do socia­ lismo, do nephelibatismo, do feminismo ? — Ha tudo isso ? —Pelo menos parece. A Regeneração, o Ideologo, Tolstoi, e logo depois Stirner, Nitzsclie, o naturismo, o symbolismo... — Deus do céo ! E verdade que eu leio pouco. Alguns desses senhores entretanto (creio que os nephilibatas) são por demais complicados. A arte, para mim, é a simplicidade. Ser simples e sobrio é um idéal. Elles, ao contrario, confun­ dem, torturam, torcem. —A verdade é que nós atravessamos, um periodo estacionário, intervem Filinto Esse -

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mesmo nephelibatismo passou. A geração vi­ ctoriosa é ainda ad e Bilac, Alberto, Raymundo na poesia e Machado de Assis, Netto, Aluizio na prosa. — E o feminismo, que pensa do feminismo? Parece-me ver nos olhos de D. Julia um brilho de vaga ironia. — Sim, com eífeito, ha algumas senhoras que pensam nisso. No Brasil o movimento não é comtudo grande. Acabo de receber um convite de Julia Cortines para collaborar numa revista dedicada ás mulheres. Descanse ! Ha uma seccão de modas, é uma revista no genero da Fe mina... Já passa de duas horas o tempo em que eu, numa causease de coiro, interrogo inquisito­ rialmente os dois artistas. J^evanto-me. —Yaí-se embora ? Tão cedo ? — Duas horas! Ha lá em baixo, naquella for­ nalha, uma outra fornalha que me espera—o jornal. Despeço-me. —Ainda uma pergunta : dos seus livros qual prefere ? —Vai ficar admirado. —E a Fallencia ? —Não. —O primeiro? —Não, é a Casa Verde, porque foi escripto de collaboracão com meu marido. A Casa. Verde lembra-me uma porção de momentos felizes... O

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— Imagina eu fazendo romances! Era porque ella queria. Tambem só me sentava á mesa depois que me dizia: tem que fazer um capitulo boje com estes personagens, dando-lhe este desen­ volvimento. D. Julia sorri. Como o tramway passe, preci­ pito-me, e, ao tirar o chapéo, já dentro do carro, vejo no terraço os tres airosos perfis dos tres petizes de Filinto, que adejam no ar as mãosinhas de rosas. Então, emquanto o tramway descia a montanha, com a visão daquellas duas horas embaladoras, eu pensei que o adeus perfumado das crianças fôra como um resumo e um symbolo do espi­ rito daquelle lar. Filinto dividiu o tempo entre o esforço material e o verso, para lhes dar o coníorto. D. Julia, a creadora genial, tema doce arte de ser mãi. E os seus livros não são outra cousa, na sua intensa verdade, que a evocação do Amor, do Amor multiforme, fatal como o viver, o Amor em que se desnastra como um harrpejo de alegria, como a esperança mesma da vida presente, crendo no futuro, o riso cantante das criancas...

SYLVIO ROMÉRO

Dez dias depois de mandar o meu questionário para a Campanha, onde o mestre refundia toda a sua obra, recebi uma carta telegraphica que se pode resumir em duas phrases : « E diííicil. Vou ver sí faco.» Passaram-se mais duas semanas e outra carta surgiu: «Tanto trabalho fez-me neurasthenico. Não posso responder nestes trinta dias.» Fiquei descorçoado. Entretanto, não esperei muito. Ainda não decorrera metade do tempo marcado para o repouso do incansável espirito, recebi com a resposta este simples bilhete : «Não pude esperar. Lá vai a coisa. Sí não servir, rasgue.» A coisa era esta extraordinaria carta, cheia de mocidade e de fulgor: « Meu amigo.—O seu questionário poz-rne em serios embaraços. Logo que o recebi, suppuz ser cousa facillima o dar-lhe immediata resposta. Quando me afundei em mim mesmo, para sondar como se me tinha operado o que se podeO

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O MOMENTO

LITERARIO

ria chamar a minha origem e formação espiri­ tual, conheci que essa especie de exame de con­ sciencia não era nada fácil. Achei, em minhalma, meio velada, num semicrepusculo subjectivo, tantas anthropologias, ethnographias, lingüisticas, sociologias, criticas religiosas, folk-loricas, jurídicas, politicas e literarias, que tive medo de bulir com ellas e me me er nesse matagal... Conheci, sem esforço e para meu mal, que, sí não sou ao pé da lettra um scientista, não me cabe também a denominação de literato, no sentido restrictissimo que este qualificativo tem entre nòs e parece ser a intuição por v. abra­ çada, quando diz no auto de perguntas : De seus trabalhos quaes as scenas ou capítulos, quaes os contos, quaes as poesias que prefere ? Escrevi, é certo, algumas poesias, entre os dezoito e vinte e cinco annos, que andam ahi em dous volumes. Mas foi só. Não tenho romances, contos, novellas, dramas, comedias, tragedias, folhetins, chronicas, phantasias... Não, nada disso. Conheci, mais e de súbito, que essas confis­ sões de autores são coisa perigosa : sí se diz pouco, parece simplicidadeaífectada e insincera; sí se diz um tanto mais, parece fatuidade e pedantería. O

SYLVIO ROMERO

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Quiz fugir á resposta; mas estava preso peia promessa. Palavra de tabaréo não torna atrás... Ahi vai, pois. Em mim o caso literário é complicadíssimo e anda tão misturado com situações criticas,y ^ pliilosophicas, scientificas e até religiosas, que nunca o pude delias separar, nem mesmo agora para lhe responder. Não tive nenhumas precocidades literárias, scientificas ou outras quaesquer. Quando escrevi a primeira poesia e o primei­ ro artigo de critica, tinha dezoito annos e meio bem puxados e já andava matriculado na facul­ dade do Recife. Para lhe dizer tudo, devo partir do princi­ pio. Faço-o com acanhamento, mas é indispensá­ vel. Nestes assumptos ou tudo ou nada. Não se assuste, serei breve. Gomo carater e temperamento, sou hoje o que era aos cinco annos de idade. Não se admire; é que sou, sí assim posso dizer, uma victima das duas primeiras, mais fa­ mosas e mais terríveis epidemias que devasta­ ram o Brasil no século xix. Em 1851, anno em que nasci, foi nossa terra invadida por uma violenta epidemia de febres más, que se estendeu por varias províncias.

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O MOMENTO LITERARIO

A villa sertaneja em que nasci, em Sergipe, o Lagarto, não ficou immune. Minha mãi teve a febre (suppõe-se que já era a hoje nossa patricia mui conhecida—a amarelia) ; esteve ás portas da morte, não me podia amaentar. Eu tinha seis semanas. Fui trans­ portado para o engenho de meus avós maternos a quatro leguas de distancia, na região chamada o Piauhy, de um rio deste nome que alli corre aguas turvas e cortadas no tempo das seccas. O sitio era delicioso, com trechos de matta virgem, bellos outeiros fronteiriços, riachos correntes e o engenho. Este era dos de São os mais poéticos nas scenas de sua movi­ mentação especifica. Basta a (manjarra—chama-se lá), para pôr em tudo urna nota festiva. Fiquei no engenho o,tal M minação, até aos cinco annos. Dos tres em diante a moagem era para mim um encanto. Quando os bois ou cavallos eram bem mansos, eu trepava tambem na almanjarra e ajudava a cantar a algum dos tangedores « Pomba vòou, meu camarada, Avôou, que hei de fazer ? Quem de uoite leva á bocea, De dia que ha de comer ? »

Ainda agora sinto no ouvido a melodia sim­ ples e monotona desses e de outros versinhos do genero ; e invade a saudade, doce compa-

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nheira a quem devo nos dias tristes de hoje as raras horas de prazer de minha vida. Tudo que sinto do povo brasileiro, todo meu brasileirismo, todo meu nativismo vem prin­ cipalmente dahi. Nunca mais o pude arrancar d’alma, por mais que depois viesse a conhecer os defeitos de nossa gente, que são tambemos meus defeitos. Outra coisa me íicou incrustada no espirito, e com tamanha tenacidade que nunca mais hou­ ve critica ou sciencia que dalli m’a extirpasse : —a religião. Devo isso á mucama de estimação, a quem foram, em casa de meus avós, encarregados os desvelos de minha meninice. Ainda hoje existe, nonagenaria, no Lagarto, ao lado de minha mãí, essa adorada Antonia, a quem me costumei a chamar também de mãí. E um dos meus Ídolos, dos mais recatados e mais queridos. Nunca vi creatura tão meiga e nunca vi rezar tanto. Dormia commigo no mesmo quarto, e, quando, por alta noite, eu acordava, lá estava ella de joelhos... rezando... Bem cedo aprendi as orações e habituei-me tão intensamente a considerar a religião como coisa séria, que ainda agora a tenho na conta d uma creacão fundamental e irreductivel da humanidade.

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Desgraçadamente, ai de mim! não rezo mais; mas sinto que a religiosidade jaz dentro de meu sentir inteiriça e irreductivel. Muito diaphana, idealisa da, mas é sempre ella. Uma epidemia—a febama fora do Lagarto, no ou h g en o tra a do morbus, em 1856, fez-me voltar definitivamente para a villa, para a casa de meus país. Havia mais recursos na povoação do que no engenho, quasi despovoado na escravatura pela peste. As scenas do cholera de 1856 foram dolorosissimas por quasi todo Brasil. Lembra-me bem a chegada á casa paterna em meio da epidemia. Numa vasta sala (era a sala de jantar), junto a uma das paredes lateraes, em colchão posto no chão, agonisava minha irmã Lydia, a primeira deste nome. Minha mãí, chorosa, sentada perto da doentinha, punha-lhe botijas de agua quente, ferven­ do, aos pés. Meu paí, ainda muito vigoroso, e um senhor que eu não conhecia (era o medico) preparavam numa mesa, ao meio da sala, um emplastro de não sei que substancias. A menina, muito formosa, nos seus quatro annos, muito esperta, muito intelligente, muito pegada com minha mãí, so tinha, então, vida nos seus enormes olhos negros. Que estranho olhar! O

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Allumiou-me tristemente a entrada na casa de meus pais—e tem-me brilhado através da existencia por cincoenta annos seguidos sem se apagar. A volta á casa era assim feita em meio da tris­ teza. A peste continuou a lavrar com intensidade. Lydia morreu ; minha mãí, atacada depois, esteve a se partir também. Muitos escravos de estima falleceram. Eu nada tive, mas accendeu-se-me n alma uma tão intensa saudade do engenho, que me torturou por annos inteiros. Quando, aos domingos, meus avós vinham á missa na villa, a minha alegria era sem par. Os encontros com Antonia eram festejados com la­ grimas de contentamento. Mas as separações, quando tinha de regres­ sar ao engenho ! Eram o inferno. Eu, creado fóra até aos cinco annos, era, no principio, como estranho aos meus irmãos mais velhos, que me faziam troças e me maltratavam muitas vezes, com essa malignidade propria dos meninos. Dahi, um estado d’alma que se me produziu e ainda hoje perdura, digo-o á puri­ dade, quer me acredite, quer não. Habituei-me cedo a ser paciente, soífredor, ao mesmo tempo desconfiado, suspicaz, talvez, e, ainda por cima, resistente, bellicoso.

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Algumas destas qualidades são boas, parece, outras inconvenientes. Existem em mim, encerram os germens de minhas tendencias de anaíysta e critico. Alliadas as que tiveram origem no engenho Moreira, explicam, em grande parte, toda a minha vida e toda a minha obra. E eis ahi porque disse, em principio, que era victima das duas maiores epidemias que asso­ laram o Brasil no século xix. Não seria, talvez, sem razão affirmar, por ou­ tro lado, a existencia de certas predisposições hereditarias : a propensão analysta e critica, como devida, em grande porção, a meu pai, André Ramos Roméro, portuguez do norte, muito intelligente e muito satyrico; a para não dizer de mim— a bondade, á minha mãe, Maria Vasconcellos da Silveira Ramos Roméro, cujo coracão é uma herança de meu avô Luiz J ♦ v> Antonio de Vasconcellos, outro portuguez do norte, de quem até hoje só descobri um igual na bondade nativa, inesgotável, espontanea,—no velho Barão de Tautphoeus. Peço-lhe que me perdoe o ter aqui incluido os nomes de meus paes e avós. Ha disso uma razão : é que meus desaffectos, por me eu assignar, a principio, Sylvio da Silveira Ramos, para abreviar o nome, e, depois, só SylvioRoméro, poro encurtar aindamáis, andaram ahi a tecer uns libellos sem graça e sem verdade.

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No Rio ha muita gente que conheceu e co­ nhece toda a minha familia. Os senadores Olympio de Campos e Martinho Garcez são do numero. A nova residenciana villa, onde meu pài era negociante abastado, dos cinco aos doze annos, fortificou em mim as disposições innatas e as adquiridas. O Lagarto, n’aquelle periodo, era uma terra onde os festejos populares, reisados, cheganças, bailes pastoris, tayêras, meu boi... im­ peravam ao lado das magnificas Festividades da igreja. Saturei-me d’esse brasileirismo, d’esse lorismo nortista. Não devo occultar certa acção de dous livros que foram, nos últimos tempos de escola primaria, a base do ensino do meu derradeiro mestre de primeiras lettras. Um—o Epithome da Historia do , de J. P. Xavier Pinheiro, por causa da descripção de nossa terra—de Rocha Pitta, que occorre logo nas primeiras paginas : « O Brasil, vastís­ sima região, felicissimo terreno, em cuja super­ ficie tudo são fructos... » Outro, os Luziadas, por muitos trechos que me encantavam. O Brasil da descripção de Pitta ficou sendo o meu Brasil dephantasia e sentimento; a poesia de Camões ainda hoje é uma das mais elevadas manifestações da arte no meu ver e sentir, e, ti

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com scu ardente amor da patria, fortaleceu o meu nativismo. Apezar das innúmeras palmatoadas que apa­ nhei na leitura e analyse dos dous livros, nunca perdi a sympathia por Luiz de Camões e pelo, mais tarde, traductor do Dante. Da minha aprendizagem de preparatorios no Rio de Janeiro, de 1863 a 67, guardo saudosas reminiscencias de cinco homens que influiram assás no meu pensamento. Padre Gustavo Gomes dos Santos, professor de latim, pelas muitas coisas que profusamente, com muito gosto e muito saber, communica^a, em aula, não só das lettras antigas como das portuguezas e brasileiras. Foi quem me despertou o prazer literario. Joaquim Veríssimo da Silva, lente de philosophia, pelas exposições da metaphysica allemã, principalmente de Kant, de que se mostrava grande sabedor. Padre Patricio Moniz, mestre de rhetorica e poética, pelas excursões que, em conversa, fazia lambem pelos dominios germânicos, de cuja ptiilosophia era muito admirador, combinandoa, já se vê, com a escholastica. Estes dous fi­ zeram-me divisar ao longe os systemas philosophicos. Francisco Primo de Souza Aguiar, a cujo cargo estavam as cathedras de historia e geographia, no antigo Atkeneu Fluminense, onde

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eu estudava, por suas admiráveis lições em que salientava o papel e o valor histórico das gentes germánicas, e pelas muitas scenas da terra allemã que, com intenso prazer e num accento muito communicativo, punha diante dos olhos de seus ouvintes. Finalmente, o barão de Tautphoeus, o Ídolo da mocidade do tempo, verdadeiro typo lendá­ rio, que a todos enchia de respeito, admiração e amor. Não foi meu lente; mas, por ser a bondade em pessoa, deu-me a honra de innúmeras palestras nos tempos dos exames, em que o procurava. A philosophia da historia deste sabio tinha uma raiz ethnographicapoderosa, que me fez logo impressão e me ficou até ao presente. Aos dous últimos, é claro, devo o meu ger­ manismo histórico, político, social, diverso do allemanismo o, pregado em Pernam­ litera buco, por Tobías Barreto, de 1870 em diante. No Recife, onde aportei em janeiro de 1868, e onde permaneci até 1876, levei os dous pri­ meiros annos calado, no estudo das disciplinas que, até aos dias actuaes, me têm preoccupado mais. As influencias alli recebidas não fizeram sínão desenvolver o que em mim já existia, desde os tempos do engenho, da villa, da aula primaria e dos preparatorios. As tres primeiras leituras que fiz no Recife, 3.

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por um feliz acaso, me serviram para abrir defi­ nitivamente o caminho por onde já tinha envere­ dado, fortalecendo as velhas tendencias. Foram um estudo de Emilio de Lavelley a cerca dos Niebelungene da antiga poesia popular ger­ mánica, um ensaio de Pedro-Lerroux sobre a Gothe e um livro de Eugenio Poitou sob o titulo—Philosophos Francezes Contemporáneos. O primeiro metteu-me nessas encantadas re­ giões d e folk-lore,critica religiosa, mythologia, ethnographia, tradições populares, que me têm sempre preoccupado. O segundo ñas accidentadas paragens da critica literaria moderna, que tanto me tem dado que íazer. O terceiro no mundo áspero e movediço da philosophia, em que me acho nas mesmas con­ dições. Mas tudo isso já vinha de trás. Ahi ficam as varias scenas do Io acto — As Origens — de minha vida espiritual. Como, depois, me orientei de tudo isso, por entre as leituras e estudos que tenho feito por quarenta annos ininterruptos, o que aprendi dos mestres, o que tirei de mim proprio, isto é,* o 2o acto do drama—A Formação— deixo de 6 indicar, porque já me vou tornando seccante. A critica indígena que o procure por si mesma descobrir e refazer, sí achar nisso algum in­ teresse. Deixei para o fim a influencia em mim exer-

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cida por Tobias Barreto, para ter o prazer de destacal-a conti mais força. Não recebi delle propriamente idéas; apren­ díamos, por assim dizer, em communi. D elle aproveitou-me intensamente, e nunca fiz disso mysterio,o entbusiasmo de combater, o calor da refrega, o ardor da luta, o espirito de reacção, a paixão F vida do pensamento, pelo espectáculo das idéas. E assim, penso, meu caro João do Rio, tenho respondido ao seu primeiro quesito. Ao segundo, pondo de parte uma fingida modéstia que nunca tive, e sem perder a cabeça em julgal-os mui grande coisa, declaro que, sí se pode assim falar, de meus trabalhos preum d’elles visou um firo fim eteve funcção especial. Me gustan todos... Desculpe a rude franqueza de nortista. anO terceiro ponto do questionário se tolha coisa para ser discutida em estudo apro­ fundado. 0 momento actual parece-me um momento de simples rdnão a p , de decadencia. O mesmo se deu em começos do século xvin depois de G regorio de Mattos e Antonio Vieira, que se pode considerar brasileiro pela acção; o mesmo nos principios do século xix, após o surto da escola mineira. É o que se nota na própria Europa. Fazendo mais de perto a distincção da poesia *

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e da prosa, não me parece que esteja esta pu­ jante no momento de agora e a outra decadente. Apurando bem os pros e os , eu me decidiría antes pela poesia. Estão ainda vivos e na forca da mocidade e + vigor do talento seis, pelo menos, dos melho­ res poetas que o Brasil tem produzido. Fazem ainda verdadeira a sentença de ser o lyrismo a mais fulgurante manifestação da esthesia patria. A’ quarta pergunta respondo sem hesitar : a funccão literaria e intellectual de nossas * antigas provincias não é a de crearem literatu­ ras d parte, como, com alguma ironia, se alvi­ tra no Rio de Janeiro, depois que o saudoso Franklin Tavora falou em literatura do Norte. Não foi no sentido incriminado o seu pen­ samento, com o chamar a attenção para as tradições, os costumes, as scenas nortistas e com o alludir aos bons talentos daquella zona. A satyra é escusada, ainda que parta princi­ palmente de provincianos acariocados. A funcção das provincias, prefiro lhes chamar assim, do norte, sul, centro e oeste, éa de pro­ duzirem, a variedade na unidade e fornecerem á Capital as seus melhores talentos. Sempre foi isto desde os tempos de Silva Alvarenga, dos Andradas, Cayrú, Odorico Men­ des, até Ruy Barbosa, Joaquim Nabuco, Coelho Netto, Raymundo Corrêa, Arthur e Aluisio Azevedo, Luiz Murat, José do Patrocinio, Graça

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Aranha, Araripe Junior, Aflbnso Celso, Arinos, João Ribeiro, José Veríssimo, Capistrano de Abreu, Fausto Cardoso, Mello Moraes, Teixeira Mendes... e duzentos mais, passando por Gon­ çalves Dias, Alencar, Porto Alegre, Macedo e as mais vivas figuras do romantismo. Inútil é lembrar os politicos cujo numero é legião. Pelo que se refere ao quinto e ultimo quesito, affirmo convicto, posto nunca tivesse sido um homem do oflicio, que o jornalismo tem sido o animador, o protector, e, ainda mais, o creador da literatura brasileira ha cerca de um século a esta parte. E no jornal que têm todos estréado os seus talentos; nelle é que têm todos polido a lin­ guagem, aprendido a arte da palavra escripta ; delle é que muitos têm vivido ou vivem ainda ; por elle, o que mais vale, é que todos se têm feito conhecer, e, o que é tudo, poderia ser mais sí houvesse um accôrdo e juncção de forças; é por onde os homens de lettras chegam a influir nos destinos deste desgraçado paiz entregue, imbélle, quasi sempre á fúria de politiqueiros sem saber, sem talento, sem tino, sem critério, e, não raro, sem moralidade... E aqui faz ponto seu admirador. » Não é preciso fazer o elogio desta carta cheia daquelle espirito que o philosopho chamava de eterno...

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Dez horas da manhã. O grande artista escreve. A sala forrada de cinza está atravancada de altas estantes de canella, de largos divans indianos, de vastas rocking-ch irsde couro lavrado. Na a secretária, um frasco de neurosina, um volume de Dumas, um pote de faiança com fumo rionovo. Ao fundo, uma colleccão de retratos de amigos. Muitos estão mortos. Os amigos que morrem levam para a sepultura um pedaço da nossa própria vida... A atmosphera morna éde inteira quietação. Na rua, o mormaço do céo, afogado em nuvens, parece abater as arvores ; na sala ouve-se apenas o imperceptível cicio da penna no papel de linho, emquanto um gato, muito gordo, muito branco, muito pelludo, lambe de vagar uma das patas. Coelho Netto levanta-se normalmente ás 5 da manhã, sentase a escrever ás 6, trabalha até ás 12, vai para o duch*e frio, almoça e ás 3 da tarde recomeca para só terminar quando seaccendemna cidade as primeiras luzes. Ha quatro horas já, impai/

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pavel e divina, a phantasia impelle a sua penna de aco. —Pode-se falar ? O artista levanta acabeca. £ — Oh! tu? entra... Aproveito e descanço um pouco. Estou a escrever agora uma peça para a companhia Lucinda e Christiano. A principio foi um prazer. Mas eu tenho um juiz, o meu primeiro publico, minha mulher. Outro dia sentei-a naquella cadeira e fil-a ouvir um acto. Sabes a sua opinião ? E uma peça perversa, que me vai crear uma porção de inimizades! Ver­ dade é que não ha nada de mais actual. Estudo aspectos da nossa sociedade ainda por estudar no theatro, e entre os quaes o mundo dos decahidos e a celebre questão dos casamentos... Minha mulher obrigou-me a rasgar uma scena inteira, entre um velho, que é o elemento hones­ to, representativo do nosso antigo fundo moral e o grupo moderno. Que tem Sr. Paiva ?—Ora, o que tenho! Não sabe que o Souza casou?— Bom, e o que ha nisso para tristezas ?—Mas a primeira mulher está viva... Começava assim. Pois, rasguei a scena ! Não imaginas como custa inutilisar um trabalho quando o sentimos vivo e exacto. O meu publico porém é inexorável. Senta-te, Tomas café ? Coelho Netto está de pyjama branco, meias O

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de seda, escarpins de pellica. Senta-se um in­ stante. —Sabes que inda não pensei no questioná­ rio ? Ha lá um ponto muito grave,—a pergunta sobre a influencia do jornalismo. —E dizer qualquer coisa : muito bom, muito máo, regular... — Sem explicações ? —Pois sí é grave! Netto sorri. — Vamos a ver o questionário. Deve estar numa destas gavetas. Procura-o. O papel branco em breve apparece dobrado em dous, e eu prevejo que daquellas simples perguntas a imaginação de Coelho Netto fará surgir a maravilha e o encanto. Sí é de pasmar o brilho, a scintillação de estylo no escriptor, a faculdade da imagem, o poder evoca­ dor, o commentario agudo e a torrencial phantasia do seu claro espirito como que se accentuam na conversa. Netto conversa irresistivelmente, kaleidoscopicamente. A palavra vive no seu labio com um poder formidável e consciente. Ha mo­ mentos em que se tem, pela harmonia dos perio­ dos, a rapida impressão dos malabaristas jogando bolas de metal de pesos differentes, e cada phrase sua em torno do assumpto traz, numa palpitação de encantos, a constante visão dos cultos mortos e dos deuses. Coelho Netto é, de resto, de uma rude franqueza meridional.

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—Para a minha formação literaria, comeca elle, não contribuiram auctores, contribuiram pessoas. Até hoje soíTro a influencia do primeiro periodo da minha vida no sertão. Foram as his­ torias, as lendas, os contos ouvidos em criança, historias de negros cheias de pavores, lendas de caboclos palpitando encantamentos, contos de homens brancos,a phantasia do sol,o perfume das florestas, o sonho doscivilisados.,. Nunca mais essa mistura de ideaes e de raças deixou de pre­ dominar, e até hoje se faz sentir no meu eclectismo. A minha phantasia é o resultado da alma dos negros, dos caboclos e dos brancos. E do choque permanente entre esse fundo complexo e a cultura literaria que decorre toda a minha obra, e dahi Balladilhas, livros de urna factura absolutamente especial. O

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—Ha, entretanto, urna parte da sua obra... —Sim, a parte fescenina. É ahi, no Fructo Prohibido, que começo a ter a responsabili­ dade do meu trabalho. O amor pelas lendas, pelo phantastico ficou porém. O livro que mais me impressionou foi As Mil e Uma Noites. Depois toda a obra de Shakespeare, o Dom-Quixote, os poetas gregos, Plutarcho que releio constantemente... —E dos modernos? —Flaubert, o admiravel Maupassant, Taine, que é a base da minha visão critica, e os ingle-

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zes contemporáneos, com especialidade os dramatu rgos. —Quanto a Portugal? —Todos os clássicos, Eça de Queiroz... Eu estudo com grande amor a lingua portugueza, mas sou pela liberdade, fujo aos estudos pro­ priamente chamados classico-grammaticaes. As linguas evoluem, e eu admitto, como necessidade de representação de idéas, o estrangeirismo. Tenho a respeito da palavra uma theoria : a pala­ vra falada é a palavra viva, livre, solta de todas as cadeias, capaz de por si só definir, pintar, colorir; a palavra escripta é a palavra agrilhoada, morta, sem a expressão immediata. A primeira tem a intenção que é tudo e a inflexão que é a realidade da intenção. Toma por exemplo a palavra Deus. Deus tem uma còr no juramento solemne, outra no auge do pavor, outra na iro­ nia, tem todas as cambiantes do sentimento, graças á inflexão e, ás vezes, apezar de sagra­ da, falta-lhe moralidade, como quando uma rapariga, comida de beijos pelo amante, mur­ mura tremula—Meu Deus! A palavra escripta vive do adjectivo, que é a sua inflexão. Dahi agrande necessidade de dis­ ciplinar o vocabulario. Coelho Netto éno Brasil o que Ruydar Kipling é na Inglaterra,—o homem que joga com maior numero de vocábulos. Alguém ja lhe calculou o léxico em 20.000 palavras.

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—A questão não é de vocabulario; é de dis­ ciplina. Os russos têm uma porção de diccio­ narios de soldados e para nada lhes serve o possuil-os. Eu consegui disciplinar o vocabula­ rio. Dada urna certa impressão, concluida urna idea, posso sentar-me e escrever. A idéa sahe vestida e os termos exactos juntam-se no per­ feito reflexo da impressão. Estou a tomar uns ares dogmáticos... Perdoa. E quasi uma con­ fissão. Vem desse esforço, que foi a pouco e pouco desbastando do meu estylo os guisos de muitos adjectivos para substituil-os por um só, exacto, o emprego de certos termos populares como sarrilhoe de palavras desejosas de dar a idéa mais onomatopaica do facto, como chorno com a significação de mormaço—dous substantivos victimas em tempo da critica... Accusam-me de preciosismo, meu caro amigo. Não sabem elles que o artista é o resultado de mil influencias desencontradas... —Qual dos seus volumes prefere? —O Pelo Amor! Não se admire. Prefiro o Pelo Amor! por uma questão de momento. Ainda naquelle tempo julgava-me capaz de alguma coisa no Brasil. Foi uma batalha perdida, mas de que me lembro com saudades, como certos generaes velhos recordam nostálgicos as derro­ tas. Em todo o caso foi uma perda que accentuou a scisão e determinou uma corrente lite­ raria.

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—Mas só o Pelo Amor!? —E no romance Inverno em Flâr. A verdade é que, emquanto escrevo, sinto um grande prazer e depois fico assustado com os defeitos. Tenho um processo de trabalho constante. Só as novellas foram acabadas e retocadas antes de serem entregues aos editores. O resto da minha obra tem sido escripto dia a dia para os jornaes. Assim fiz a Capital ra ed F , o Rei o Turbilhão. —Mas é impossível! —E a verdade. Devo muito á Gazela e ao Paiz, que receberam os meus primeiros ensaios. A critica, quando foram dados á luz alguns vo­ lumes meus com intervallos apenas de dias, gritou contra o que ella chamava mercenarismo. Não sou infelizmente conhecido nem do publico nem da critica. O publico não sabe a capaci­ dade do meu trabalho, a critica ignora porque trabalho tanto. A publicação do Pendjab levantou então uma celeuma. Não sabem elles que, subordinado o estylo á concepção, a penna trabalhaquasi mecanicamente, não querem recordar que muitas obras primas foram escri­ pias em dias como o med Shak a H principalmente recusam comprehender a neces­ sidade de um escriptor que resolve viver apenas da própria penna. Não conheces a historia do Rajah? Eu entrava na Gazeta precisando de dinheiro e encontrei

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o Araujo zangado. Por que? Tinham perdido um novo e sensacional folhetim. Não se incommode doutor, faço-o eu. Qual! Tens muitas psychologias... Faço sem psychologias! Fomos dalli tomar um sorvete. Então fazes? 0 principe encantado serve? Também é um titulo velho. O rajah seja, o Rajah de Pendjab. Para depois de amanhã? Para depois. E a reclame foi feita para um romancista francez, de que a Gazeta deu o retrato repro­ duzindo a cara do Humphreys... Rimos os dous alguns instantes. Coelho Netto continúa : —A critica não fala só da abundancia de atavios, do mercenarismo com que confunde a realisação immediata de uma idéa acabada, fala também do numero dos meus volumes. Nestepaiz, onde se tem, nãoa preguiça mental, mas a preguiça physica que inhibe de escrever, o Sr. Coelho Netto tem cerca de trinta volumes. Pois, não senhor. Coelho Netto tem acabados 50 volumes. —Cincoenta ? —Sim, e a todos préso, sim, 50! Bastava que em cada um houvesse uma pagina digna para que os publicasse. Levanta-se machinalmente para mostrar-me alista dos volumes a apparecer. Nesse momen­ to febril, com o olhar brilhante, o labio grosso,

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cheio de juventude e de esforço, é impossível deixar de admiral-o. —Sou um trapista do trabalho, a de somme dos francezes—quero, e mourejo como um servo da gleba... Ah ! meu amigo, o artista não é o zoilo das confeitarias á cata de jantar. Preciso de um relativo conforto, preciso rodeiar os meus filhos de bem estar. Trabalho ! Creio que só a tenacidade e o querer têm ob­ stado a minha morte. Hei de ir até o fun com o prazer de ter pago sempre as minhas dividas... Ficamos um tempo calados. Netto mostrame as provas dos seus livros, agora editados em Portugal—A Treva, Agua de Juventa, o Mysterio do Natal, a Pastoral. Que extraor­ dinaria actividade ! que prodigioso cerebro ! —E quanto a escolas, a lutas? —Não ha nada. Vejo no Brasil urna coísa curiosa : dous grupos, um muito pequeno, dos que podem; outro, enorme, dos que não podem. Lembram-me a historia da princeza Parizat ñas Mil e uma noites. No alto da montanha havia tres talismans : a arvore que canta, o passaro que fala e a agua amarella. Quem subisse até lá seria possuidor de todos tres, mas o caminho era aspérrimo e as pedras faziam um estranho clamor. Quem attendesse ao chamado das pedras em pedras se transformava. Só a princeza che­ gou ao pico da montanha. O clamar das pedras é aqui o nephelibatismo, o occultismo, o criti-

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cismo, o torcido,o escabujamento,o hysterismo... Acho, entretanto, que chegaremos a ter uma Escola B ra silera , não o indianismo mas a idéa brasileira, o costume brasileiro, numa lingua que terá a clareza do Eça, e a maneira franceza na mais plastica de todas as linguas—a lingua portugueza. Para isso, é preciso antes de tudo o prestigio oílicial. A transformação far-se-á violentamente, porque nós somos um povo de explosões. No dia em que a protecção official fôr uma realidade, o publico admirará a arte no theatro e no romance, como se encaminhou para a Avenida, eo artista, tendo-se deitado num gra­ bato, acordará num leito de purpura. —Falei-lhe da literatura dos Estados. —0 Euclides da'Cunha já dividiu magistralmente o norte e o sul. E incontestável. Daqui para ' alguns annos teremos duas litteraturas distinctas : a dos trovadores ao norte, a dos troveiros ao sul. O norte não é bellicoso. Um profundo lyrismo vive na sua alma, e tanto as alegrias como as dores são sempre postas em canto. Daquelle pedaço de terra o sol nunca de todo se arreda, porque, sí a luz foge, fica o calor acalentando o solo, as arvores e os céos. Os homens vivem com os elementos, são dispersivos e crêm nas divindades. No sul, ao contrario, a terra fria faz a concentração, a luta, e os elementos es­ trangeiros vão se accentuando. O norte é virgem e bravio; ao sul, os homens de musculos bran-

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cos e cabellos de metal vão escorraçando a raca primitiva. O norte, para onde emigram os pre­ tos, os caboclos e os descendentes delles, será o reservatório fatal da grande poesia natural do Brasil. Prevejo no futuro o Rio como um grande celleiro e a divisão da literatura em duas lite­ raturas distinctas— a do sertão e a da campina... Eu interrompi sincero : —Gomo é diflicil ser sceptico ao lado do corypheu da esperança!... llavia na sala confortável o encanto das no­ bres emoções. Netto parou. —Falemos então do jornalismo, já que é preciso. O jornalismo foi sempre, no Brasil, po­ litico. Cansado o publico, a mania politiqueira foi attenuada pelos processos industriaes. O jornal deixou de ser a urna para ser... —Para ser ? — ... uma oílicina. Tem sido para a nossa literatura um grande bem relativamente. Como nunca teve audacia para educar, acceita um tra­ balho, não pelo genio do auctor, mas sempre de accordo com o agrado do publico. A’s vezes é perverso. A decadencia do theatro é devida exclusivamente ao jornal e aos proprios escriptores dramáticos jornalistas. O publico é um animal que se educa. A principio ia aos theatros bons. Yeiu o annuncio, o balcão dominou, começaram os incentivos para o trololó. Hoje o publico está acostumado e não quer outra cousa. O

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Quanto á literatura que publicamos nos jornaes, lembra os livros impressos no tempo do SantoOfíicio. Não têm o visto da Inquisição, mas têm o visto do redactor-chefe. —Uma ultima pergunta : é religioso ? —Muito. Não sei sí creio em Deus Christo, sí em Deus-natureza, mas creio no principio immanente da divindade. E por isto, talvez seja neste paiz um dos raros homens que esperam... Tornou a sentar-se, poz-se a escrever. Pela janella aberta entrava o dia abafado e só o gato impassivel, muito gordo, muito branco, muito pelludo, olhava os céos com um perturbado olhar da sua verde pupilla côr de topázio verde...

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Oillustre Sr. Medeiros e Albuquerque escre­ veu-me dous dias antes de partir para a Europa esta longa e admiravel carta: «Recebi o seu inquérito e vou procurar res­ ponder com toda a sinceridade. Acho-o muito interessante—não, porém, para o grande publico, que de certo se importa muito pouco com tudo o que a meu respeito se lembrou de me per­ guntar. A mim o caso interessou, por me obri­ gar a fazer um verdadeiro exame de consciên­ cia, em que eu nunca pensara. Aqui, ao alcance de minha mão, tenho dous livros em que se fizeram a grandes homens da Inglaterra e daltalia perguntas em parte analogas á primeira do seu inquisitorial interrogatório. O primeiro livro chama-se Books which have influenced mee o segundo I cento miglio italiani. Assim, sí eu quizesse épater le bourgeois, ou tomar um certo parentesco intellectual com pensadores notáveis, poderia copiar alguma

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dessas listas. Mas quasi todas começam por nomes illustres da antiguidade classica. Ora, eu declaro humildemente que conheço poucos clássicos e que esses não tiveram sobre mim nenhuma influencia. Tenho verificado em palestras literárias, comparando confidencias intimas com declamações publicas, que o meu caso é o de muita gente; mas todos acham feio confessar claramente esse facto... Como, porém, o auctor deste inquérito, pela cara rapada e pela vastidão do abdômen, tem um certo ar fradesco, não tenho duvida em derramar-lhe no seioesla envergonhada confissão... Evidentemente, eu não quero negar valor aos clássicos. Provaria apenas minha inintelligencia. Pensando na época em que elles viveram, recordando o estado dos espiritos e da instrucção daquelles tempos, qualquer pessoa é for­ çada a admiral-os. Mas o que eu não creio é que elles dêem hoje emoções fortes a ninguém. E é so isto o que eu digo. Em todo caso, esse venerável pessoal antiquís­ simo nada influiu sobre mim. Só um me pareceu assombroso: foi Lucrecio. Aliás, eu o li modernisado na traducção em verso de André Lefèvre. Ha algum livro de literatura—romance, poesia ou contos—que tenha influído decisivamente sobre mim? Creio que não. Li muito, li gulo­ samente centenas de romances e de livros de poesias, mas não tenho idéa de que nenhum

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marcasse uma data na evolução do meu espirito. Admirei extraordinariamente , que ainda hoje acho um livro soberbo; Trois , de Edouard Rod; orée,de René Mai d 'A L Pierre et Jean, de Maupassant; Daniel de Rosny, e Mensonges, de Paul Bourget. O Paul Bourget, que escreveu este ultimo, não era ainda o pedante abominável, que um casa­ mento rico e o desejo de entrar na aristocracia fizeram depois desse auctor, a partir do Disci­ ple. Pierre et ,J npelo seu estylo de uma ea pidez sem igual, claro e simples, me parece a obra prima de Maupassant. Foi talvez leendo-o que eu tive mais pronunciadamente a sensação de que o ideal do estylo é a clareza e a sim­ plicidade. Aliás, embora não se fale desse livro, é de crer que o auctor o apreciasse mui­ to, porque foi justamente para elle que escre­ veu uma proclamação literaria. Na poesia ninguém me causou maior admi­ ração do que Victor Hugo e Lecomte de Lisie, sobretudo nos Poemas Barbaros. Depois, co­ nheci Harancourt, em Ame nue e , e o fiz um dos meus companheiros habituaes de trabalho. Digo « companheiros habituaes», porque sobre minha mesa ha sempre alguns volumes de ver­ sos, e entre dous artigos de jornal, que tantas vezes tenho de escrever a seguir, eu intercalo a leitura de algumas poesias, lidas em voz alta.

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Dos poetas da lingua portugueza, de nenlium gosto tanto como de Anthero de Quental. Mas, ainda uma vez : é evidente que a quan­ tidade enorme de obras literárias em prosa e verso, que eu tenho lido, ha de ter ínfluido sobre mim. Não vejo, porém, nenhuma que possa destacar para dizer que foi meu guia, meu idéal. Nenhum poeta ou romancista me deu as grandes emoções de certas obras de sciencia. Apenas Richepin poude, talvez, pela circ*mstancia que referirei, ter uma tal ou qual primazia. Foi assim. Eu vim, sozinho, aos 18 annos, de Lisboa para o Brasil. Yim num vapor allemão. Era timido e acanhadissimo. Pouco antes de embarcar, por simples acaso, comprei dous livros: Força e ,M téri de Buchner, e a jnias, de Richepin. Os outros volumes, que eu trazia, foram para o porão do navio, em um caixote. Assim, a bordo, isolado como sí esti­ vesse num deserto, tive amplo tempo para ler e reler varias vezes esses dous volumes, que se completavam maravilhosamente. Já então eu conhecia a Origem das especies de Darwin e admirára a bella introducção que para esse volume escreveu Glémence Royer e de que ainda hoje, mais de 20 annos depois, sei de cór alguns trechos. Mas o livro de Buchner foi para mim um assombro, uma revelação, um deslum­ bramento! Na segregação em que eu estava só 4.

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sahia delle para lêr as Blasphemias; e as im­ pressões que me vinham do philosopho e do poeta se completavam. Percorri varias vezes esses dous volumes, meditei-os longamente e não posso dizer todo o abalo que produziram sobre o meu espirito, no qual fizeram realmente uma revolução; mas o poeta era subsidiário do philosopho, porque a belleza que eu achava em Richepin vinha, sobretudo, da sua philosophia. Depois, outros livros que contribuiram deci­ sivamente para formar meu espirito foram a Historia da Creacão Natural de Hceckel, o Exame da Philosophia de , por Stuart Mili, e os Primeiros Principios de Spencer. Não me lembro de que nenhuma obra de literatura me tenha dado a sensação de intensa alegria, quasi direi : de embriaguez intellectual, que eu tive ao ler a parte do Incognoscwel daquelle livro de Spencer. E evidente que eu não pretendo ennumeraras obras que apreciei, mas unicamente as que fize­ ram sobre mim uma impressão violenta, as que mudaram o rumo do meu pensamento, fixando-o no que elle hoje é. Talvez fosse licito mostrar que tanto os li­ teratos como os scientistas que eu citei se caracterisam por uma qualidade : a clareza do estylo. As philosophias e as literatices obscuras sempre me repugnaram. Depois, uma ordem de leituras me attrahiu : 6

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o hypnotismo e o occultismo sob, todas as suas formas. Foi Bernheim quem me levou para ahi com o seu livro sobre a Suggestão. Creio, po­ rém, que o meu espirito já estava a bom ca­ minho, porque, embora tivesse praticado muito o hypnotismo e devorado quanto escriptor arre­ vesado escrevia a respeito de scienciasoccultas, tive sempre a ambição de entender nitidamente essas cousas complicadas e o resultado foi que salii de todas essas leituras tão agnosticista e materialista como para ellas entrara. Aliás, o livro excellente de Bernheim é, por isso mesmo, o melhor dos guias. Chega a ser um pouco es­ treito. Mais vale, porém, isto que a divagação aventurosa dos typos como o Coronel De Ro­ chas e outros charlatães. Mas esta resposta está degenerando em uma auto-biographia. Passo, portanto, muito mais resumidamente á sua segunda pergunta. Em regra, os auctores preferem, não as suas melhores obras, mas aquellas que lhes deram mais trabalho. É o caso dos pas díe vários filhos que têm maior predilecção pelo mais doentinho e grandes rigores para os sadios e fortes. Flaubert tinha acabado por detestar Madame Bovary e proclamava o melhor dos seus trabalhos a Tentation de Saint-Antoine. Sully-Prudhomme creou um verdadeiro horror

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ao Vase-brisé, que, entretanto, não ha quem desconheça. Não é de crer que Olavo Bilac pre­ fira o seu soneto Ouvir nem Raymundo Corrêa As Pombas. Quanto a mim, de tudo quanto tenho escripto nada me desagrada menos que o prefacio do livro de Coste—Phenomenos psychicos livro editado pela casa Garnier. Esse prefacio, que tem cerca de 80 paginas, mereceu criticas do Dr. Manuel Bomfim, do Dr. Araripe Junior, e suscitou diversos outros reparos. Espero um dia responder a elles. Nessas paginas eu penso ter formulado uma lei digna de estudo. E certo que a palavra lei se presta a varias accepções. Mas Ribot chama leis empíricas as que « con­ sistem na reducção de um grande numero de factos a uma formula unica, embora sem dar sua razão explicativa. » E isso pelo menos eu supponho ter conseguido. Mas seja ou não um engano da minha presumpção de auctor, o certo é que nada escrevi com alegria maior. Dos meus contos, os que eu acho menos ruins são : Flôr Secca, As calças do Raposo, O presente de Vôvô e Noivados Trágicos. Das mi­ nhas poesias? Resposta a uma propaganda, NoivaPerdida e o soneto Pudica. E agora a terceira pergunta. Francamente, eu não distingo neste momento em nenhuma das literaturas que conheço « escolas litterarias », na accepção estreita que

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cTantes tinham estas designações. No Brasil, menos do que em outra qualquer parte. E natural que seja assim. Nós somos uma nacionalidade em formação. Não, porém, em uma formação regular, orientada para um certo ideal, para um estadio futuro que seja possível presentir desde já. Sí fosse assim, teríamos uma literatura original e forte. Mas somos uma nação que se vai formando anarcliicamente, sem rumo. Na indecisão geral das ideas universaes, que ha neste momento em todo o mundo, nós, no caso especial do nosso Brasil, ainda temos a nossa indecisão, própria de uma evolução, que nin­ guém sabe para onde se orientará. Em regra, quando uma nação está na imminencia de urna O grande transformação histórica ° esse estado é fecundo. Acontece com os povos o mesmo que com os individuos. A adolescencia é urna época de fortes entliusiasmos. 0 homem não está ainda formado de todo, mas sente o que vai ser dentro em pouco, e é o confuso desabrochar de todos os senti­ mentos que devem apparecer mais tarde que faz a belleza dessa idade. Mas si—figurem a hypothese—chegando á adolescencia, um ser, que até ahi tivesse tido a evolução de um homem, não soubesse sí ia passar a homem, ou a peixe, ou a ave—é natural que esse monstro, em vesperas de uma brusca e incerta transfor­ mação, não tivesse nenhuma grande aspiração, JJfi. m SjflSJfii *IHHvl

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porque, precisamente, não saberia a que aspirar. Creio bem que esse é o nosso estado. Continuaremos unidos ? Continuaremos inde­ pendentes? Da fusão de todos os elementos ethnicos que se vão misturando em proporções irregulares no nosso território, que povosahirá? Não sabemos nada disso... Dir-se-á que um poeta ou outro qualquer artista, sentado á sua mesa de trabalho, não precisa indagar nada disto para rimar uma poe­ sia? É verdade. Mas para haver uma corrente 1iteraria, em qualquer nação, é necessário que haja um grande numero de sentimentos communs entre todos os que nella habitam. E é o que nós não temos. Tanto não temos que um pe­ daço do Brasil poude ainda ha pouco, pelo laudo iniquo do rei de Italia, ser desmembrado delle sem causar no nosso povo a minima emoção. Dir-se-á que o nosso caso nada tem de novo e todas as nações dependeram da fusão de vários / contingentes ethnicos? E também verdade. Mas essa fusão se fez lentamente, aos poucos, du­ rante séculos. Sempre, porém, que, de um modo brusco, houve, em uma nacionalidade qualquer, irrupção de elementos estrangeiros, toda a vida literaria ou desappareceu ou se amesquinhou. E a nossa nacionalidade se está fazendo por essa invasão tumultuaria de elementos diversos, es­ tranhos, variegados, mal distribuidos pelo ter­ ritório.

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Parecemos um cadinho, ao fogo, em que to­ dos os chimicos do mundo fossem atirando in­ gredientes varios. Que combinação sahirá de udo isso ? Por ora, somos uma « mistura », sem proprie­ dades definidas... Para dizer mais claramente : é irnpossivel pensar em literatura nacional— característicamente « nacional »—quando ainda não somos uma nacionalidade, nem temos um ideal definido do que poderia sera futura nacio­ nalidade brasileira. E chego á quarta pergunta :—ha probabilidade de se crearem literaturas á parte, com o desen­ volvimento dos centros literarios dos Estados? —Não! Nunca! Mesmo as grandes nações européas, tendo tradições seculares, cada vez offerecem menos características especiaes que as diflerenciem umas das outras. Quanto mais os nossos pobres Estados! O que ha entre nós é falta de meios de communição e falta de instrucção primaria. Quasi ninguém lê, quasi ninguém sevè. D’ahi a exis­ tencia ephemera desses grupinhos estaduaes, que sáo forçados ao elogio mutuo e exaggerado pela estreiteza do meio e pela diííiculdade de se­ rem conhecidos no resto do paiz. Mas desde que um livro publicado no Amazonas fôr tão facil­ mente lido lá como aqui ou no Rio Grande do Sul, ninguém pensará mais na phantasia das lite­ raturas estaduaes.

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O ideal de cada artista será sempre o de fazer vibrar o maior numero possível de creaturas humanas. Como querer, á vista disso, tendo uma lingua já tão pouco falada, fazer obras de / um sabor meramente local? E tolice... Na Bélgica, ha, por exemplo, quem tente des­ envolver, em contraposição ás producções em francez, as producções em flamengo. Que resul­ tado tem tido essa propaganda? Nenhum. E no entretanto, o flamengo é uma lingua que tem tradições. Facto idêntico na Italia. Em vão, diversos auctores procuram reviver os dialectos locaes dos velhos reinos de cuja fusão resultou a Italia moderna. Mas embora esses dialectos te­ nham também antigas literaturas já hoje nada podem. A lingua italiana a todos supplanta. Os sentimentos modernos tendem a ser os mesmos em todo o mundo. Os paquetes a va­ por, as estradas de ferro, os automóveis, a im­ prensa e o telegrapho, os mil e um processos que augmentam a sociabilidade humana, tendem a reproduzir em todos os cerebros do mundo o que a physica ensina que succede com o nivel dos líquidos nos vasos communicantes. Ha bem pouco tempo, uma circ*mstancia me fez pensar nisso. Um facto local, o assassinato do ministro Plehwe, em S. Petersburgo, me deu a mim um prazer tão intenso, como me daria o assistir á melhor scena dramatica : vibrei de alegria. E

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ao mesmo tempo que isto me succedia—a mim, que estavaaqui longe, aqui desinteressado, lendo em um banco de bonde essa noticia, em Ber­ lim, em Gracovia e em Londres (disseram-no os telegrammas no dia immediato) milhares de pes­ soas organisavam passeatas e , commemorando esse assassinato redemptor. Ha assim, a todo momento, dispersos pelo mundo inteiro milhões de pessoas animadas simultaneamente pelos mesmos sentimentos. Ora, literaturas locaes corresponderiam a sen­ timentos locaes, e estes só ainda existem por falta de meios de communicação, de uma per­ feita intelligencia entre os povos ou entre as varias fracções do mesmo povo. Quanto a mim, eu creio que caminhamos não só para a universalisação de todas as ideas, como para o emprego de uma só lingua. QEspcranto, que é ainda imperfeito, já, entretanto, provou a possibilidade de uma lingua literaria universal. Mas nisto, nem muitos crêem, nem o inqué­ rito falou. Fica, portanto, a resposta á sua per­ gunta : não ba a menor possibilidade de que se venham a crear literaturas locaes nos nossos Estados, seja qual fôr a evolução posterior do Brasil. O facto só se poderia dar sí uma zona delle fosse conquistada e povoada por uma na­ ção estrangeira. Mas, nesse caso, mudada a lin­ gua, não haveria ahi uma literatura local. Far5

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se-íam nessa zona obras na lingua e na litera­ tura do povo conquistador. Realmente, pelo que ficou dito em resposta ás duas questões ultimas, que me parece completarem-se, creio que se pode aílirmar que actual­ mente nao temos propriamente o que se possa chamar literatura nacional, embora haja livros escriptos era excellente portuguez por bons poe­ tas e bons prosadores brasileiros. Nào ha tam­ bém literaturas regionaes, nos Estados. Nenhum delles é um foco de civilisacao e parte, bastante forte e autonomo, para sustentar urna escola. Quando, pela diílusão geral da cultura, nós pas­ sarmos a ter uma literatura brasileira e orien­ tada de qualquer modo, a nacionalidade brasi­ leira se tiver constituido, também os meios de communicação com o res to do mundo já serão tão activos e constantes que a literatura brasileira será apenas o reflexo no Brasil de ideas universaes, sem nada de muito característico. As condicões para a formação de literaturas nacionaes estão cessando: ellas só eram possiveis em centros de civilisacao com urna forte unidade de sentimentos e um grande isolamento das nacionalidades visinhas. Foi assim para as literaturas franceza, ingleza, allemã, etc., de séculos passados. Dentro em pouco, entretanto, não succederá mais isso para ninguém. Ainda que subsistam o

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as diflerenças da lingua, não subsistirão as de sentimentos. Por isso se pode dizer que não temos nem teremos literatura nacional : não temos, porque nos falta cultura, embora ainda permaneçamos bastante isolados para conservar­ mos alguma cousa de caracteristico; não teremos, porque quando chegarmos a ser uma naciona­ lidade e attingirmos ao gráo de cultura precisa, o mundo, em torno de nós, terá também cami­ nhado e nós, embora o façamos em portuguez, exprimiremos apenas sentimentos análogos aos de todos os intellectuaes civilisados d’aqui, da França, do Japão... de toda a terra. Resta a sua ultima pergunta : a influencia do jornalismo. Ha, é certo, muita gente que lhe queira mal e delle diga horrores. Ha um pequeno numero de prevenções razoaveis. E ha, sobretudo, os rates e os fruits ,sec que, produzindo com largos intervallos, pequenas coísinhas chôchas, fazem de si mesmos uma alta idéa, attribuindo a rari­ dade da producção á sua preciosidade. E como o jornalismo não se compadece com esse regi­ men de reclusão intellectual, elles o atacam. Quanto a mim, nunca me lembrarei de elogiaios intestinos de um cidadão, sujeito á constipa­ ção chronica. Guardo o mesmo criterio para re­ cusar elogios aos cerebros, também « constipa­ dos», que só excretam alguma cousa com raros intervallos e violentos tenesmos...

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De um modo geral, a prevenção dos literatos contra o jornalismo é a mesma dos pintores de quadros pelos detaboletas, dos esculptores pelos marmoristas... Sempre que uma profissão usa dos recursos de qualquer arte para fins industriaes, os cultores da arte se indignam e depre­ ciam systematicamente os profissionaes, que assim se põem na sua visinhança. Quanto mais o emprego dos meios é o mesmo eha, portanto, perigo de serem ás vezes confundidos, mais também os artistas ostentam o seu despreso e procuram cavar um fosso profundo entre os dous domínios. Mas em uma taboleta se podem pintar figuras tão bonitas e tão artísticas como em uma téla destinada á moldura no mais rico dos mu­ seus. Hoje ha cartazes melhores que muitas télas celebres. 0 marmorista faz ás vezes estatuas que muitos esculptores lhe invejariam. Com o jornalismo succede o mesmo. Como os jornalistas têm^de ser prosadores, os artistas da palavra escripta, achando que elles a empre­ gam para fins de immediata utilidade, pro­ curam desdenhal-os. Demais, no afan da vida moderna, que nem a todos dá tempo para as lentas meditações, o jornal se fez um concurrente temivel do livro. Dahi o ciume, a inveja. Mas os livros bons sobrenadam apezar de tudo. Os que acham que não produzem obras-primas, porque estão jungidos aos trabalhos de imprensa, sí dispuzessem de todo o tempo preciso e não

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tivessem necessidade de trabalhar, talvez não produzissem nada nem na imprensa nem na literatura... E certo, entretanto, que a necessidade de ganhar a vida em mistéres subaiternos de im­ prensa (sobretudo o que se chama « a cozinha » dos jornaes : fabricação rapida de noticias vul­ gares), mistéres que tomam muito tempo, póde impedir que homens de certo valor deixem obras de mérito. Mas isso lhes succederia sí adoptassem qualquer outro emprego na administração, no commercio, na industria... O mal não é do jornalismo : ó do tempo que lhes toma um oílicio qualquer, que não os deixa livres para a medi­ tação o a producção. A imprensa comporta para os que nella tra­ balham com certo amor uma grande dose de arte. Que é o essencial em uma obra artistica? Dar emoções. Pois bem : é um prazer superior pregar uma doutrina, sustentar uma opinião e vèl-a se­ guir, diíTundir-se, infiltrar-se no espirito pu­ blico, através de mil obstáculos, commovendo as multidões, abalando-as, dando-lhes um ideal e forçando-as a agirem de accordo com elle. Para isso não se pede talvez a perfeição da fórma. Pede-se, porém, a clareza dos conceitos, o aproveitamento das opportunidades, a repe­ tição. Um poeta se dá por sufficientemente pago do seu trabalho sí esgotaram uma edição de mil

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exemplares dos seus versóse acharam magnifico umdos seus sonetos. E justo. Mas porque, um jornalista que defendeu um individuo accusado por todos, que sustentou uma doutrina rejeitada, não ha de ter uma grande e legitima emoção quando ve que a sua defesa mudou as accusações, ou em perdão ou em applauso, ou quando sente que a doutrina, outr’ora rejeitada, vai creando enthusiasmo, abrindo caminho ? E de tão boa arte como o soneto do nosso poeta. Não da mesma, porém tão digua de respeito como a delle. —Mas o jornalismo muitas vezes não se faz por convicção e sim por negocio. — E verdade. Mas ha poemas fríamente rima­ dos por individuos que não vibraram absolu­ tamente nada ao fazel-os e, entretanto, commovem, emocionam. Assim como se pode fazer poesia boa, por acaso, sem sentimento, tam­ bém se pode fazer jornalismo nas mesmas circ*mstancias. Ou jornalismo ou qualquer outra cousa. Taima, que foi acclamado como um actor perfeito, não sentia nas scenas mais trágicas o mínimo abalo. Emquanto a platéa delirava de enthusiasmo, elle grace=java com os outros acto­ res. —Mas os recursos do jornalismo são gros­ seiros. — Não vejo bem porque. São diferentes dos do romance ou do conto, mas visam o mesmo /

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fim : usar de palavras escripias para impres­ sionar cerebros humanos, fazer vibrar intelligencias e corações. Quanto a mim, eu comprehendo que se possa fazer com todo amor certas propagandas de idéas elevadas, insinuando hoje um argumento no meio de uma simples noticia, amanhã no commentario de um telegramma, depois num folhelim, depois num artigo so­ lemne... E é com uma verdadeira emoção que, mais tarde, se encontra aquelle argumento, que appareceu anonymo, perdido em duas linhas de noticiario, repetido aqui e acolá, fazendo o seu caminho... Por que razão ha nisso menos arte do que em amassar meia duzia de substanciascoloridas, borrar uma téla, e dar assim a impressão de uma paysagem, uma scena qualquer ? Com aquellas linhas semeadas aqui e além o jornalista creou em muitos milhares de cerebros a impressão de uma sociedade futura, constituida de outro modo, com uma vida di­ versa da actual. Pois essa obra de creaçãoe emo­ ção não é artística ?—Ninguém o devia negar! o o o Não é verdade que o jornalismo prejudique em nada a nossa literatura. O que a prejudica é a falta de instrucção. Sem publico que leia, a vida literaria é impossível. O jornal faz até a preparação desse publico. Habitua alguns mi­ lhares de pessoas a uma leitura quotidiana de alguns minutos, dando-lhes amostras de todos os generos. Os que têm gosto e tempo come-

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çam por ahi e passam para os livros. Mas o jor­ nal é o iniciador. Em nenhum paiz de grande literatura deixa de haver grande jornalismo. Sem este, aquella é impossível. Os que atacam a imprensa o que deviam fazer era atacar a falta de instrucção. E parece que já respondi mais que muito, de sobra... »

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O Sr. Lima Campos forma com o poeta Mario Pederneiras e o notavel artista Gonzaga Duque uma antiga trilogia da mutua admiração, como que á parte na nossa literatura, pertencendo aos novos pela ousadia das idéas e aos velhos pela idade, pois são todos tres contemporáneos da geração de 1890. O Sr. Lima Campos é um artista e vive como tal, goncourtisandoas horas da existencia com apuro e encanto. You encontral-o numa , que a vontade dos tres resolveu tornar um retiro de bohemia espiritual. Lima Campos recebe-me num reíloreio de plirases raras. Depois, como me sento, definitivamente resolvido a ouvil-o, o auctor do Confessor Supremo pergunta com um gesto me­ lancólico : —Então, sempre quer saber a minha opinião. Valerá apena? Ha tres perguntas—as tres pri­ meiras—cujas respostas podem ser breves. Ahi está a primeira, sobre a formação literaria... 5.

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—Não acha que a contemplação da natureza e a observação constante de todas as suas manifes­ tações na vida tenham sido e sejam os melho­ res e, talvez, os únicos formadores do individuo espiritual e, por conseguinte, do individuo li­ terário?... Eu creio assim, e dos primeiros auctores li­ dos, os preferidos são, apenas, iniciadores, ape­ nas um incentivo que vem despertar, a um dado momento, o que já existe formado, por outros processos, no individuo mental. —Mas ha de haver influencias mais fortes —as da mocidade... — Que me occorram de prompto— e isso já lá se vai pelos meus bons tempos de máo preparatoriano : Bernardo Guimarães, no romance nacional; fa*gundes Varella, na poesia,e um coníeur hespanhol de costumes, Antonio Trueba; mais tarde, porém, empolgaram-me de todo Hugo, Gcethe, Balzac com as suas deliciosas 11fusões Perdidas, esse adoravel Maupassant com Pierre et Jean e com SurGarrett, Fialho e ah!... mestreDante e mestre Flaubert. Ao proferir este ultimo nome, Lima Campos ergueu-se, ligeiramente, em pequena mesura. —E a critica? Nunca o preoccupou a critica? —Ah! João! A critica é sempre a agua da analyse pedantocratica vasada malevolamente na açorda sahorosa da producção. Imagina tu uma purée deliciosa de grãos de

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bico ou uma juliana de caldo louro, quente e cheiroso, em que se vase, de repente, um copo de agua fria e salobra!... Em todo caso, ella tem o seu papel e tem os seus mestres... O Dr. José Veríssimo por exemplo. Esse é o mais proeminente dos nossos críticos. Admiro-o pelo peso dos conceitos, pela circ*mspecção discreta do seu espirito analytico, pelo critério do seu methodo expositivo e pela fluência canora e flebil do seu estylo, que nos lembra o deslisar marulhoso de aum lympha. É profundo, é, incontestavelmente, profundo! não fosse a existência de um outro critico emi­ nente, o Sr. Medeiros e Albuquerque, e, sem duvida, o Sr. José Veríssimo seria sem rival. Chamo a tua attenção para o artigo em que o Sr. Veríssimo, em um dos últimos numeros da revista Kosmos, escacha, com clava de mestre, Camillo Castello Branco. Sí o autor do Macario já não estivesse morto, seria caso para ir direitinho adubar as terras municipaes do cemiterio de San Miguel de Seide. Mudo o curso á conversa. — E os seus trabalhos ? Qual delles prefere? —Só tenho um livro publicado, o Confessor Supremo,e um em preparo,—romance de época, de costumes e de typos — . 0 mais consta de trabalhos avulsos em jornaes e revistas. Gosto de todos e, sí assim não fosse, não os leria dado á publicidade; a preferencia, por conseguinte,

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síz^não impossível, é, pelo menos, para mim, difíicil. Amo-os; agora, os que foram victimas em lel-os é lá outra cousa : devem tel-os achado detestáveis... —Andam a dizer que atravessamos um pe­ riodo estacionario para a arte. —Não; não me parece que a prosa nem a poe­ sia contemporáneas estejam estacionarias aquí. Quando uma literatura conta prosadores como Gonzaga Duque, Virgilio Varzea, Coelho Netto, e poetas como mestre Luiz Delíino, Alberto de Oliveira, Mario Pederneiras, Emilio de Menezes, Olavo Bilac, B. Lopes, Annibal Theophilo, Raymundo Corróa, Machado de Assis, Luiz Murat, João Ribeiro, Daltro Santos, ella vive, ella pro­ gride, evolue, ganha, dia a dia, feições novas. Quanto a escolas, felizmente, não existem; mas existem, infelizmente, algumas assimilações, feitas com talento, de outros autores, já nacionaes, já estrangeiros, desvirtuando o cunho original de auctoria que a obra deve ter; e, mais infelizmente ainda, existem grupos e a luta, a repulsa desses grupos, que occultamente se guerreiam e, por vezes, de modo mes­ quinho, sob o disfarce da desintimidade. É doloroso, é lastimável, é uma porcaria em que só aproveitam os mediocres, os moendas-seccas e os attachés de uns e de outros lados. — Entre os prosadores não citou Machado de Assis...

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—Propositalmente. Admiro-o, leio-o com prazer, com immenso prazer mesmo, mas julgo-o na prosa, além de demasiadamente pessoal, um estacionario; não podia, portanto, incluil-o entre os prosadores que citei, como permittime não incluir também Ruy Barbosa e Euclides da Cunha, porquanto a prosa de ambos não pode, a meu vèr, ser considerada prosa artistica. Serão, antes, escriptores notáveis que, a rigor e pro­ priamente literatos, considerando esta ultima classificação em relação a coisas de arte, que é do que se está tratando. —Não podia precisar quaes sejam os grupos de que ha pouco falou ? —Elles existem; todos os conhecem. Para que citar nomes ? —Pertence a algum ? —Nunca. Ligo-me, apenas, de um modo accentuadamente intimo a dous dos nossos mais admiráveis artistas, um da prosa e outro do ver­ so : Gonzaga Duque e Mario Pederneiras ; amoos, tenho-os como dous irmãos; mas, nas inti­ mas relações pessoaes que nos ligam, as nossas individualidades de arte, embora se admirem e sejam aflins na orientação, se independem; não formamos, por conseguinte, um grupo, uma coterie literaria, mas um trio de velha affectividade duradoura e carinhosa. Comprehendo, e passo aos Estados. A’ minha pergunta Lima, Campos sorri...

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—Todos os legítimos méritos literarios que se revelam nos Estados convergem sempre para aqui. O Rio no Brasil, como Paris na França, e como todas as capitaes de todos os paizes, com excepção da Allemanha, cujo verdadeiro centro intellectual artístico é Munich—é e será sem­ pre a grande attracção das intellectualidades pro­ vincianas; d’ahi a superioridade do meio lite­ rario do Rio sobre os dos Estados; elle é o nú­ cleo dos méritos mais apurados de todo o Brasil. Pondo de parte, pois, o caso de urna excepcionalidade intellectual tão intensa e tão apuradora de si propria, que em qualquer parte se revele e se mantenha a rnesma, todos os demais méritos literarios, por mais legítimos que sejam, sí persistirem ein se conservar ñas provincias, ou nunca se libertarão de urna certa feição inci­ piente que caracterisa a literatura provinciana, ou, sí ja estiveram e brilharam em centros supe­ riores, se estiolarão gradualmente até o atrophiamento, o estacionamento completo. E que lhes falta o incentivo, de que resulta o apuramento, o entrain, a continua evolução, e que só nos grandes centros intellectuaes podem encontrar ; somente os grandes excepcionaes, os supertalentos, os possuem innatamente. A esses é até indiferente Paris, o Sahara ou o Pajehú das Flores, Munich ou o Quebra-Cangalhas. Olha, João, eu sí fosse um genio, preferiria até a soli­ dão; arranjaria, a geito, urna phebaidasinha a

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meu modo, e emqiianto abrissem avenidas cá por baixo, pirava-me por esses suburbios acima e só reappareceria com cinco Lomos em 8o, já promptos, para metter figas á Literatura Bra­ sileira do Sr. Sylvio Romero. Aquillo é que havia de ser obra de folego, João, de folego e de volume!... Apezar da maldade, esse desejo de silencio, entre arvores, na solidão, faz-me comprehender que, mesmo não sendo genio, Lima Campos começa a preferir que o não importunem. Faço com açodamento a ultima pergunta sobre o jornalismo, e o escriptor responde, de vagar, fumando : —O jornalismo, como se acha constituido ac­ tualmente, não me parece dos melhores, mas já houve tempo em quefoi excellente, não direi como ctor,porém como elemento animador fa — isso no tempo dourado, em que os espíritos scintillantes, robustos, limpos, sem invejas, sem receio de sombra e, sobretudo, sem snobismo, eternamente moços e eternamente bohemios, de Patrocinio e de Ferreira de Araújo, eram as duas vidas, as duas almas simples e claras, as duas forças sadias da imprensa. Moje, comtudo, elle produz ainda, embora com menos frequên­ cia, bellas organisações literarias, e nós ahi te­ mos para provar o quanto o jornalismo pode, não criar, mas evidenciar o literato. E voltando para mim, calmo, perfeitamente

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serio, o Sr. Lima Campos começa a elogiar-me. Quero impedir as phrases, mudar a conversa. Dos seus lábios sobe, como uma estranha har­ monia, esse saboroso som do elogio. Entonteço, quasi convencido. Vou mesmo dizer : —Mas, qual! não é tanto...—quando lembro o seu desejo de ficar só... Então recuo, afastome, fujo. Saio cheio de felicidade e venho por ahi a pensar que não lia outro homem com tanta pe­ netração e um tão lindo estylo... A literatura! o momento literário! Sim, tudo isso, sem o elogio mutuo, que seria, Deus de Bondade ?

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Do eminente Dr. Aííbnso Celso, o auctor de tão bellos quanto apreciados livros, recebi a seguinte carta, datada da Villa Petiote, alto da Serra, Petropolis : « Prezado confrade. — Respondendo á sua obsequiosa missiva e ao questionário que a acom­ panhou, direi o seguinte : I Para sua formação literaria os auctores que mais contribuiram ? —Sinceramente, não o posso indicar com precisão. Desde muito novo, tenho, mais que o habito, o vicio da leitura. Calculo era milhares os volumes de todos os generös e procedencias compulsados por mim. Oual o resultado ? A’ parte a corroboração de algumas verdades fundamentaes e eternas, antes de ordem moral que intellectual, em tudo apuro apenas nomenclatura. Escriptores das mais di-

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versas e antagónicas tendencias me deleitaram e absorveram a attenção. Ignoro qual delles actuou de preferencia sobre o que o meu digno con­ frade denomina—a minha formação literaria. Ignoro mesmo em que é que consiste e até se dispõe de vida própria essa formação. II

Das sitas obras qual a que prefere ? Especi­ ficando inais ainda : u q , dentr balhos, as scenas ou p ca , quaes os quaes as poesias que prefere ? —Em março de 1756, escrevia Voltaire aos irmãos Crame, seus editores : « Não posso dei­ xar de agradecer-vos a honra que me dispensais, imprimindo as minhas obras; mas, nem por isso, sinto menos pezar por havel-as composto. Quanto mais a gente se adianta em idade e conhecimen­ tos, tanto mais se arrepende de ter escripto. Nenhuma das minhas obras me satisfaz ; algumas eu quizera nunca as ter feito... » Isto escrevia Voltaire, no apogeu da nomeada. Que direi eu dos meus opúsculos ?! Sem falsa modestia—-je iríen veux de pas d'avoir trop it. d d'avoirm al dit. Por que, nesse caso, continuar a escrever? Francamente, não sei. A verdade é que me regosi jo quando elogiam os meus trabalhos, e soffro, durante algumas horas, quando os deprimem :

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sobretudo sí, a meu ver (e, de ordinario, assim me parece), o praticam de má fé. Tomo então o firme proposito de nada mais escrever. Na manhã seguinte, surprehendo-me com a penna na mão... III Lembrando separadamente a prosa e a poesia contemporâneas, parece-lhe que, no momento actual, no Brasil, atravessamos um. periodo estacionario, hanovas escolas ( , poesia de ,a o etc.), ou ha a luta entre anti­ cçã gas e modernas ? Neste ultimo caso, quaes são ellas ? Quaes os escriptores contemporâneos que as representam ? Qual a que julga destinada a predominar ? —Encarregado pelo ministro da insfrucção publica e bellas artes de redigir um relatorio sobre o movimento poético francez, de 1867 a 1890, Catulle Mendes, depois de copiosa dissodação, assim concluiu : « Após o esplendor dos genios românticos, a que se juntaram as glorias parnasianas, surdiu acaso um poeta muito alto, muito vasto, muito pujante, dominador dos espiritos e dos corações, digno do universal triumpho ? Não, infelizmente. Não ha motivo para desespero ante o numero extraordinario de sonhadores singulares, prosa­ dores originaes, almas commovidas, artistas exquisitos ou violentos, de que se honram os ultiA

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mos anuos e a hora actual. Quantos mestres ! O Mestre, não! Já Víctor Hugo, no declínio da idade, exclamava, a um tempo com orgulho e com tristeza : O fim do século é o fim de um dia enorme, glorioso, resplandescente, o occaso de prodigioso sol : depois em seguida, luminosas, faiscantes, diversas, finas, deliciosas, as peque­ nas estrellas innumeraveis... » Guardadas as proporções, a observação applica-se ao Brasil. Atravessamos uma quadra de incontroverso talento e actividade. Sobresaem duas ou tres estrellas de formoso brilho, em qual­ quer região da terra. Nenhuma producção, porém, magnifica, so­ berana ; nenhum incontestável centro planetario. E, aliás, a situação literaria de todo o Occi­ dente. Salvante Tolstoi, a quem agora caberá sem exaggero o summo epitheto de genio ? No tocante a escolas, penso, também com Mendes, que ainda e sempre só ha e só houve duas fôrmas supremas para os surtos divinos do homem: a ode e a epopéia, o genero lyrico e o genero épico. IV O desenvolvimento dos centros literarios dos Estados tenderá a crear literaturas á parte ? —Mesmo nos paizes compostos, ethnica e historicamente, de elementos heterogéneos,

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nunca a expansão local da literatura foi factor de desagremiação. Entre as superioridades do Brasil, avulta a da sua hom*ogeneidade, rara e extraordinaria, comparada á de outras nacionalidades. Não comprehendo bem o que signifique literatura á parte. Ou as obras literarias têm valor, ou não têm valor. Si não têm valor, claro está que não prevalecem, em nada inflem, nenhum efíeito determinam. Si têm valor, o seu primordial e insupprivel caracter é serem humanas, geraes, propagadoras de sympathia, estreitadoras da solidariedade nacional e universal. V O jornalismo, especialmente no Brasil, é um factor bom ou máo para a arte literaria ? — Houve quem definisse o jornal um archi­ vo de bagatellas, ou, mais complacentemente, familiar e rapida conversação quotidiana sobre tudo quanto occorre. Declara Emile fa*guet, ao mesmo tempo eximio critico e insigne perio­ dista: « O jornalista é um vulgarisador. Deve ter qualidades mediocres, porém eminentes em sua mediocridade. Não é preciso que seja um pensador, mas é preciso que á maioria do pu­ blico pareça mais pensador do que aquelles que o são. Não é preciso que seja original, mas é preciso que possua cunho pessoal entre os que

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não são originaes. Não é preciso que seja muito sabio, porque, então, apenas saberia uma cousa, mas é preciso que saiba superficial­ mente, e bem nitidamente, grande multidão de cousas differentes. Não é preciso que seja bom escriptor, mas é preciso que apresente todas as qualidades médias do estylo,—clareza, preci­ são, vivacidade, movimento,—e as apresente em gráo assás elevado. » Sendo assim, tornar-se-á benéfico ou nocivo o jornalismo (e o do Brasil não difiere do dos outros paizes) á arte literaria ? No meu conceito, depende a solução do modo como se concebe a arte. Sí arte é, como preten­ dem muitos, o conjunto de processos e meios de que o homem se serve para suscitar no cora­ ção de seu semelhante emoções e impressões, especialmente o sentimento do bello, não pou­ cos jornalistas realisam o ideal artistico e não se mostram somenos aos artistas de outras cate­ gorias. Será o exercício do jornalismo compatível com o de diversa manifestação da arte, com o de romancista, de historiador, de dramaturgo, por exemplo ? Penso que não. O jornalismo é exclusivista, é exhaustivo. A’ semelhança vio-ente não ad* da constituição * O niitte accumulacões. A pratica honesta e sincera de qualquer arte o

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reclama o homem integralmente. « Sí queres ser genuíno artista, doutrinava o velho Leo­ nardo da Vinci, repelle quaesquer inquietaçõese cuidados alheios á tua arte. Seja tua alma como o espelho que reílecte todas as cousas, ficando sempre polido, immovel, radiante e puro. » Ahi está o meu depoimento no seu curioso inquérito, meu caro Sr. João do Rio. Muito de industria, apoiei os meus assertos em outros de maior auctoridade. Foi para lhes emprestar al­ guma probabilidade de justeza, mutuando a galanteria do convite. Queira apertar a mão que cordialmente lhe estende. » E, como se ve, o proprio encanto, a própria modéstia...

LUIZ EDMUNDO Luiz Edmundo é o mais sympathico dos nossos poetas. Alto, com uma physionomia muito pallida, onde branquejam os dentes e scintillam os chrystaes das lentes, é a figura obrigada das pri­ meiras sensacionaes, dos hotéis to date, das partidas de campo aristocráticas, dos dock com senhoras distinctas. Não ha quem não goste do seu perfil, quem o tenha visto discutir, quem o tenha atacado. O elogio en­ volve-o. O primeiro livro de versos que resolveu publicar exgotou-se. O segundo também. O terceiro também. Um bello dia, diante de um absyntho, o poeta, cujo excesso de elegancia o faz comparável ao conde de Fésansac e a Wilde, resolveu partir para Paris. Ia continuar a sua philosophia de descrença amavel, ia pôr em pratica e em exercício—essa alma da geração que tão bem pintou no seu profundo soneto : Na garupa e febril desse animal possante Que me lembra um centauro enraivecido e bruto, Vejo o Mundo passar, veloz e palpitante, E a voz humana e a voz da Natureza escuto.

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Perguntam-me : — Onde vaes, ó Cavalleiro andante ? Que ardor te leva assim, tão forte e resoluto? Buscas acaso a flor de um sonho extravagante? Que vae comtigo ? 0 Bem ? o Mal ? a Guerra ? o Lucto ? E eu deixo este animal de trágicos furores, Que é o Desejo e que tem as azas dos condores, Na corrida veloz que me tira do Mundo. Pouco importa saber onde me leva a Sorte, Corra embora, febril, para as portas da Morte, Para o profundo Céo, para o Inferno profundo! Cheguei, entretanto, ainda a tempo de lhe éxigir antes da partida a resposta ao questio­ nário. —Cinco perguntas? indagou elle. Mas são as Yogaes do Rimbaud! É uma questão de estado d alma. Eu posso sentir A branco, quando outros o sintam ver­ melho ou amarello. —Isso é que seria interessante. O poeta pensou. —Mas é diflicil. Não tenho cores simples, lenho nuanças da mesma desillusão. —Manda-m’as em verso. —Mando-Pas em prosa. Alguns dias depois eu recebia cinco tiras de Desdobrei a primeira. Eis o que dizia : f

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A Um monsenhor Fructuoso, cura em terras mi­ neiras, chegado aos meus por parentescos dis­ tantes, senhor de grande saber e muita moral e de quem trago de memória a figura sempre irriquieta e biliosa que lhe vinha de annos pas­ sados em rixas políticas e perseguições de partido, foi quem me poz primeiro entre as maõs os livros que rne ensinaram a amar a arte com o ardor com que elle entendia e amava. Monsenhor, que tinha poucas predilecções, parecia ter, na vida, duas, decisivas, 1‘ataes e serias : a caça ás pacas e o amor aos clássicos. Ora, quanto a suggestão da caça eu me podia furtar, porque então habitava um sobrado na rua da Alfandega, logar de poeira e não de pacas, mas quanto aos clássicos a coisa era outra; eu estudava latim e monsenhor me inundava de Horacios, de Ovidios e de Virgilios. Phcebus volentem proelia mc loqui Victas et urbes, increpuit lyra...

Tudo isso me vem á memória numa evocação suave, onde vejo o gesto de monsenhor, o seu nariz de ave rapace, a sua mão esqueletica e a sua barba mal feita. Eu adolescia e nessa idade, em que eu todo era um rebento de aspirações e espinhas car-

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naes comecei a ter, então, pelos clássicos, a noção do que era literatura. Mas apesar das palavras de monsenhor não, os amava, mais por uma idiosincrasia especial que por uma razão fundada. Foi como comecei. Depois veiu o internato com os livros em voga nos collegios urbanos d’aquella epocha e que liamos á socapa pelos dor­ mitorios e recreios— Julio Verne, Hugo, Boisgobey, Eça e Balzac, num cabos profundo de onde a literatura picaresca, ás vezes, surgia numa brochura de Rabellais ou num opúsculo de ver­ sos p*rnographicos, sempre de auctor desconhe­ cido. Isso apenas prova o meu inicio incolor e apagado como o de quasi toda gente, que vem desde o padre que ensuina os clássicos e prega moral até ao livrinho obceno de literatura de alcova, que a gente põe nos forros e cavas da manga, na ancia importante de escondel-o aos bedéis. Liberto dessa primeira e cahotica leitura entrei noutra ainda mais cahotica e tremenda. Lia, lia muito, tudo que me cabia entre as mãos com o cachet das edições da Plume Mercure, Stock, tiou en rp a h C Devorava brochuras francezas com ancia e a febre intellectual que absorve os espiritos para um paiz fóra do mundo. Li parnasianos, român­ ticos, decadentes, symbolistas, satánicos, natu­ ralistas, naturistas e magos, mas sem entanto

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reler um auctor por predilecção, sem a preoccupação do proselytismo, do apostolado. Como sou um pouco cheio de arrebatamento e paixão, é natural que já dissesse, ou mesmo escrevesse—X é o meu auctor predilecto, é o molde do genio ou a bandeira de arte que tenho que defender, mas com sinceridade hoje affirmo—nunca tive modelador de arte que me fascinasse. Não posso, portanto, meu caro João do Rio, dizer-te a fonte onde fui beber a phantasia com que eu, mais por boa intenção que por maldade, malho pelos jornaes e pelo livro, a minha arte tão sem expressão e sem côr.

E Nenhuma. Digo sem pseuda modéstia ou preoccupação de originalidade. Sou dos que não se satisfazem jamais com o que produzem e vivem sempre na febre anciosa de escrever coisa que preste. O meu melhor livro será o de amanhã. Isto é o que digo hoje e certamente o que hei de dizer aos trinta, aos quarenta ou aos sessenta annos. Fenho tres pesadelos n’alma, profundos e inapagaveis, taes os de tertado em lettra de forma tres livros de versos que, máo grado a sua fei­ ção melosa e vasia, obtiveram da critica indi-

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gena applausos que mais tarde me fizeram uma reputação rasteira e manhosa com caricaturas em jornaes ¿Ilustrados e citações nos retro­ spectos literários da terra. Não que eu desame esses pobres versos que me brotaram d alma como llores ao sol, mas porque não vejo nelles esse toque que eu sonho como o brilho que deve irradiar da boa e sadia arte. Dezmáis, a minha bagagem literaria é curta, é curtissima; venho de ha tres ou cinco annos apenas, na turbamulta de uma geração que ainda não se firmou e que ainda deve ser a promessa risonha dos artigos de critica nos jornaes.

Não creio que haja enthusiasmo como des­ animo entre os que escrevem no Brasil. O que ha é indiíferença. O ardor das velhas pugnas literarias é cousa que jà não existe entre nós. A não ser o Sr. Medeiros e Albuquerque, que se diverte, às vezes, com a leviandade de certos escriptores novos e que transforma as suas clironicas literarias em theatrinho Guignol, onde os desgraçados que lhe cahem nas mãos dansani o velho desengonço do Paí João, nada mais se ouve ou se vê. Porque, em tirando o Snr. J. dos Santos, quando o poeta B. estréa com os Cantos

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do fundo d'alma ou a Lyra do meu soffrcr, o jornal entre um annuncio de pilulas e urna prisão em flagrante nunca deixa de avançar : O livro dojovenestreante é dos que não se confun­ dem com a vulgaridade ; o artista que espere o logar que lhe compete entre a pleiade illustre dos que formam os homens de letras desta terra. E os poetas fervilham. O jornal de polemica, o pamphleto literario, desconhecemos por completo. As celebres bengaladas de Camillo fazem rir ás barrigadas escriptores e criticos, como urna historia sobre­ natural e engraçada. Chegamos mesmo, ás vezes, a acreditar que somos todos boas e inoffensivas pessoas. Já não se diz mais—Fulano é uma besta. Velhos e novos são saldunes que passeiam pela trilha literaria, bras bras dessous, risonhos, calmos, indifferentes... E dessa santa e pacata união nada avulta que impressione ou que fique: os velhos abandonam as letras e os novos dizem com ar de enfado, isto aos vinte annos, com bonitas cores no rosto : —Já não tenho velleidades... E vão ser empregados públicos.

Centros literarios dos Estados parece pilhe-

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ria, quando o proprio paiz não póde crear ainda um centro de literatura á parte. Nós temos, é verdade, no Paraná, em Minas, em S. Paulo, no Maranhão e na Bahia, faccões literárias com moços de bastante talento; mas não é crivei que elles formem núcleos característicos capazes de determinar centros de literatura á parte. De resto, os olhos estão todos voltados para o Rio, onde a Academia assenta quarenta immortaes que oííicialisam a Literatura Naional. •

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U É péssimo, e penso como toda gente. Nós temos nesta terra duas instituições fatídicas para os homens de letras : uma é a política, a outra é o jornalismo. O desgraçado que tem talento, ou cahe na columna diaria a matar a sua arte a tresentos mil reis por mez ouvaí apodrecer n’uma cadeira de Congresso a ganhar setenta e cinco diarios entre os discursos sobre a lei do orçamento e sobre o imposto do gado. Talvez isso atteste soberanamente a nossa fraqueza intellectual; mas como o paiz é de analphabetos os desviados desculpam-se dizendo, —que não podem morrer de fome. E em parte elles têm uma forte e pensada razão. o

CLOVIS BEVILACQUA

O eminente Sr. Clovis Bevilacqua manda-me do Recife a seguinte resposta:

I « Ainda no collegio, em Fortaleza, dos 12 aos 14 annos, deliciavam-me os versos e as novellas que podia obter. Como é de imaginar-se, o regi­ men do estabelecimento não nos permittia sínão a leitura dos livros de lição e uma ou outra lei­ tura anodyna. Chegava-me, porém, aos ouvidos o ruido da literatura como o echo de um mo­ vimento realisado em mundo longínquo. E, augmentando o meu desejo de conhecer esse mundo ignorado e seductor, íui conseguindo 1er, apesar da vigilancia do pessoal administrativo, romances de Dumas, pai, alguns livros de infor­ mações como os Varões do , de Pereira da Silva, e outros de certo valor artís­ tico. Pedro de Queiroz deu-me a ler, nesse tempo,

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BEVILACQUA

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o Goethe, más nessa primeira approximação não pude comprehender as bellezas transcendentes do grande poeta. Passando em 1875 a estudar no lyceu, tive mais facilidade de travar conhecimento com os escriptores da moda: Gonçalves Dias, Varella, Alencar, Alvares de Azevedo e Castro Alves. Mas, justamente quando me ia docemente engolphando na região phantastica da poesia e do romance com os auctores citados e quantos me cahiram nas mãos, foi minha attenção despertada pelo movimento literario que então se operava no Ceará e a cuja frente se achavam Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Araripe Junior, João Lopes e Amaro Cavalcante. Desse grupo foi Rocha Lima o escriptor que mais sympathicamente actuou sobre o meu espirito. Por elle comecei a amar a critica literaria e a ter uma comprehensão mais verdadeira da literatura. Lendo Taine, Theophilo Braga, Quinet e Luciano Cordeiro, os meus horizontes literarios se dilataram e apo­ derou-se de mim forte desejo de penetrar as literaturas exóticas, isto é, a portugueza e a franceza, recebendo através desta ultima o co­ nhecimento dos grandes mestres allemães e inglezes, George Sand, com a sua empolgante Lelia, com o Isidora, o , a Indiana; Gauthier, com o i e Atile n ortu F Byron, com o Corsario, Manfredo, Giaur e D. Juan; foram os auctores da minha predilecção, nessa

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quadra. Isso quanto a estrangeiros, apesar do muito que me encantava Herculano; entre os nacionaes, Alencar tinha para mim o prestigio de uma superioridade oíFuscante. Em 1876 fui continuar os meus estudos no Rio de Janeiro, tendo por companheiros Feijó, que se finou antes de revelar todas as refulgen­ cias de seu grande talento; Paula Ney e Silva Jardim. Fui assiduo frequentador, ao lado deste ultimo, da Bibliotheca Municipal, situada então no campo de Sant’Anna, esquina da rúa Conde d’Eu; mas lia sem methodo e com pouco apro­ veitamento. Não fazia selecção nem talvez pu­ desse fazel-a. Absorvia Hugo e Schiller de mistura com Escrich e consocios; Musset e Lamartine interessavam-me tanto quanto Michelete Buchner; irmanava Shakespeare e Macedo. No Rio, começára a interessar-me pelo posi­ tivismo, de que me davam conhecimento os escriptos de Miguel Lemos; mas foi no Recife, para onde me transportei em 1878, que me familiarisei com Littré, cujas obras ainda hoje me ornam a estante e da meditação das quaes co­ mecei a extrahir uma segura intuição da ordem universal. Por algum tempo o positivismo seduziu-me, e passaram-me pelos olhos, além dos volumes deComte, os trabalhos de Wyrouboff, Roberty, Bourdeaux, Robinet e Poly. Co­ mecei depois a sentir as falhas do systema e, ao concluir o meu curso de direito em 1882, mi-

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nhas leituras predilectas, em matéria philosophica, eram Hoeckel, Spencer, Lange e Soury. Mais tarde é que Schopenhauer, Noiré, Bain, Mill e Wundt haviam de ser estudados. Com Martins Junior, Glodoaldo Freitas, João Freitas, Orlando, José Carlos e outros excellentes companheiros, embora me preoccupassem as investigações philosophicas, mantinha oculto da literatura amena e da critica literaria. Dos nossos, ia lendo os antigos, os românticos e os naturalistas, que começavam a apparecer com Aluizio, e acompanhava com muito interesse as tentativas de romance historico, sob a excellente feição de um naturalismo tradicionalista, que ia publicando Franklin Tavora. Dos estranhos, Flaubert, os Goncourt, Daudet, Sully Prudhomme, Lecomte de 1’Isle, alguns inglezes e italianos, mas principalmente Zola,o romancista e o critico, eram os auctores literários que mais doces emoções me despertavam. Foi nesse momento que os estudos de Sylvio Homero me fizeram comprehender que essa alta funcção da vida intellectual dos povos—a li­ teratura—somente á luz do critério social e ethnographico se póde bem apreciar. Depois de concluido o meu curso de direito foi que, por assim dizer, comecei a interessarme por essa bella sciencia, ao lado da qual pas­ sara cinco annos sem lhe perceber os encantos. Devo a Tobias esse inestimável serviço de me

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ler aberto a intelligencia para ver o direito. Du­ rante o curso académico, estudei apenas para cumprir as minhas obrigações e transitar pelas solemnidades escolares sem apoio estranho, mas não podia dedicar afleição profunda a uma sciencia na qual não descobria o influxo das idéas que me davam a explicaão do mundo. Incitado pelo ensino de Tobías e guiado por Jhering, vi o direito á luz da philosophia, da sociologia e da historia. Savigny, Bluntschli, Iloth, Glasson, Cimbali, d’Aguano, Cogliolo e Post, para citar sómente os mais característi­ cos, deram-me a educação jurídica. No direito penal, as minhas sympathias se declararam, desde os primeiros momentos, pela ttrza scuola de Tarde, Alimena e Liszt. Mas, ainda que a historia e a legislação com­ parada me dessem a contemplação do phenomeno jurídico no seu máximo brilho e em sua plenitude, é bem de ver que eu não me podia segregar do direito patrio, cuja expressão me davam, principalmente, Coelho da Rocha, o mais completo discípulo de Mello Freire, e Teixeira de Freitas, o maior dos nossos jurisconsultos. Talvez pareça longa esta resposta. Mas não a podia dar mais concisa. A formação de um espirito se faz lentamente, por assimilações e adaptações successivas. A historia do espirito de cada um de nós reproduz, em miniatura, a historia do pensa-

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me:ito de uma época. Mas eu me resumo, afinal. Os auctores que mais contribuiram para a for­ mação do meu espirito foram : Em literatura:—Alencar, Taine, Sylvio Ro­ me ro e Zola. Em direito :—Tobias Barreto, Jhering, Post, Savismy e Glasson. Em philos ophia :—Littré, Comte, Spencer e Hæckel. II Qual das minhas obras prefiro ? Julgo-as to­ das imperfeitas, não simplesmente em relação ao que deviam ser, mas até em relação ao que era licito esperar que fossem. Mas, para não fugir á interrogação, direi que o Direito dafam íliae a Criminologia e Direito me satisfazem um tanto mais do que as outras minhas producções; o primeiro, pelas questões de ordem social que me permittiu enfrentar, e asegunda, porque nella poucle meu espirito ac­ centuai* mais a sua individualidade. No em tanto, o Direito das obrigações é mais synthético do que o Direito ; si me pedissem um trecho para uma collectanea, eu o iria colher, de preferencia, nos Juristas losophas ; e, si fosse falar como teclmico, tal­ vez devesse dar a primazia ao Direito das ccès sôes.

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Falo somente das obras jurídicas, porque fiz do direito a minha especialidade, e portanto são as obras produzidas nesse dominio que de­ vem dar a medida do meu espirito, quaesquer que sejam as minhas predilecções literarias ou philosophicas. III Pensó que a literatura patria não atravessa um periodo estacionario. Os nossos grandes escriptores estão em actividade : Sylvio, como Araripe e Yerissimo; Bilac e Netto, como Ari­ llos ; Machado de Assis, como Domingos Olympio ou Euclides da Cunha. Quer-me parecer que em poesia os moldes estão gastos, porque o artificio matou a espon­ taneidade do sentimento, mas dahi talvez re­ sulte uma vantagem : muitas intelligencias dei­ xarão o Parnaso, onde somente os verdadeiros poetas ficarão empunhando a lyra eterna das emoções reaes. ?\To romance, a escola naturalista perdeu os tons rudes e as arestas mais ásperas: tornou-se ílexivel e adaptavel a todas as lutas de senti­ mentos, sejam individuaes e intimos, sejam sociaes e externos. Machado de Assis, Domingos Olympio, Graça Aranha e Xavier Marques, pois que Inglez de Souza está recolhido ao silencio, são os nomes

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que me vem á lembrança ao considerar esta nova feição de romance nacional. * O conto é genero que reclama esforço menor e, por isso mesmo, se mostra mais abundante. Arthur Azevedo, Medeirose Albuquerque, Lucio de Mendonça, Arinos, Nelto, Freire, Neves e tantos outros vibram todas as notas. Fujo de urna forçosamente deficiente nomen­ clatura; indico tendencias apenas para mostiar que não estacionamos. IV A literatura brasileira é urna só; mas, como as condições do meio physico e da composição ethnica não guardam uniformidade em toda a vasta extensão do paiz, é natural que, em alguns centros, se accentuem variações que, aliás, pela constante permuta de idéas e pela influencia reciproca exercida pelos maiores núcleos, ten­ dem a ser assimiladas ou a desapparecer no fim de pouco tempo. V Leitor constante de jornaes, não sou muito sympathico ao jornalismo. Sem negar-lhe o va­ lor cultural, acho que, em relação aos que nelle trabalham, esgota as energias, dispersa os es­ forços e alimenta a superficialidade; e, em rela-

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cão aos que nelle bebem idéas, mais vezes per­ turba do que bem orienta, mais vezes agita paixões do que esclarece opiniões. É uma forte projeccão de luz envolvida em densa fumarada. »

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Reeebo-o na volta da sua longa viagem. Néstor Víctor está transformado. A violencia, aquellearde pedagogo zangado com que procu­ rava convencer os discípulos, desappareceu. É um cidadão que passou por Paris, que viveu em 1‘aris, que civilisou todas as arestas do tempera­ mento na polidez de Paris. Tres annos antes faria reflexões a proposito do meu inquérito, reflexões onde haveria de certo alguns desaforos, alguns axiomas, algumas ironias e muito talento. No momento em que lhe pedia as suas idéas, entretanto, sorriu. — Já?

—Quando quizer. O tempo de reílectir. Os jornaes não deixam á gente tempo para muita coisa. Passou os olhos pelo questionário. —Mas é grave!... Mando-lhe a resposta,amanhã. E sabe? encantado, positivamente encantado... No dia seguinte recebia a seguinte carta : « Meu caro João do Rio. O terceiro livro, de

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Abílio, adoptado na escola em que aprendi a ler, é que me proporcionou os primeiros arre­ batamentos que o verso me produziu. A Mi­ nha Terra, de Casimiro de Abreu, o Adeus aos meus amigos do Maranhão, de Gonçalves Dias, e a O de aos Bahianos,do primeiro J fácio, incluídos naquella miscellanea, deixavamme fóra de mim quando eu os lia, ou mesmo simplesmente ouvia ler, tanto mais si a leitura era feita em vóz alta e com certa emphase. Eu cahia quasi que em verdadeiro paroxismo, tal a deliciosa exaltação que se apoderava do meu espirito. Nessas occasiões nunca me passou pelo cerebro a ambição siquer de algum dia poder fazer coisa assim. Aquelles homens estavam aos meus olhos muito acima de quanto me fosse dado nesse sentido aspirar. Na escola eu só íiz jornalismo manuscripto. Podia por fim tirar umas vinte ou trinta copias, tendo conseguido comprar um polygrapho. A influencia dos nossos poetas só dois annos de­ pois é que fructificou, com o estimulo de um jornalzinho, A Violeta, que rapazes mais velhos do que eu publicavam então na minha terra : « As flores são lindas, São castas, são bellas, São lindas estrellas Que brilham no ar... »

Lembra-me que foram estas as minhas pri­

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meiras trovas, benigna, incleviclamente elogia­ das pelos mocinhos que me acceitaram para seu collaborador. Depois comecei a frequentar o club literário que havia na nossa cidade e ainda hoje existe, em cuja bibliotheca pude encontrar-me com a literatura nacional e portugueza. Os poetas e os romancistas, elles e alguns críticos mais accessiveis, é que conquistavam a minha maior attenção, principalmente Gonçal­ ves Dias, Castro Alves, fa*gundes Varella, José de Alencar, Bernardo Guimarães e o auctor de uma historia da literatura portugueza, cujo nome esqueci. Li Os Luziadas, por indicação do meu professor de linguas; mas, de todo, não pude achar-lhes sabor. Foi Gonçalves Dias quem sobrepujou as demais influencias dessa epoca. Pelos meus quatorze annos de idade compuz um poemeto, em não sei quantos cantos, ingênua imitação ás poesias indianistas do auctor do Y « Qual per’ la mimosa da nacar corada, Que nasce encoberta no fundo do mar... »

Era assim que começava. Depois que fui sabendo traduzir do irancez, ao mesmo tempo que manuseava Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro,—os versos da Morte de D. João produziram-me um grande abalo,—fui lendo Victor Hugo, Cha-

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teaubriand, Madame de Stael, os livros da historia da literatura de Yillemain, fóra os clássi­ cos, que tinha de traduzir em estudo, por obri­ gação. O ^ De Víctor Ilugo, mais do que a d’Os veis, deliciou-me a leitura de Nossa Senhora de Paris, e, ainda mais do que esta, a do IJomem que ri e d’Os Homens do Mar. Seu livro, po­ rem, que eu não me limitei a 1er apenas urna vez, mas que volta e meia tinha ás mãos, por­ que elle me interessava particularmente, era o seu William Shakespeare, que obtive de uns salvados, com um grosso volume das obras dos grandes auctores italianos, mais os de Yillemain a que já me referi. Esse William Shakespeare, e depois os pri­ meiros volumes de versos de Hugo, que andei procurando de proposito, foram dos livros em que mais meditei até aos meus dezesete annos de idade, já ahi com a louca, em todo caso nobre ambição que obras taes tão facilmente, na idade em que eu estava, inspiram. Devo juntar a estes os livros de Stael, principalmente os de critica e de historia,—as paginas em que ella se refere á sua vida, aquellas outras, excellentes, sobre a Allemanha, suas reflexões rela­ tivas á Revolução Franceza, etc. Em todo caso já me achava então um tanto impressionado com o naturalismo, tendo lido principalmente muitos volumes de Zola. Cus.

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toii-me a principio acceitabo. Lembra-me de ter feito, aos quinze annos talvez, um ensaio inti­ tulado Víctor Hugo e Emilio , em que me declarava francamente pelo primeiro. Chegando ao Rio com o proposito de preparar-me para o curso annexo da Escola Polvtechnica, estudos que iniciei num estabeleci­ mento particular, um dia, por acaso, vi e comprei num livreiro .4 Philosophia d’Arte, de H. Taine, quasi peio mesmo tempo em que adquiria as Flores do Mal, de Beaudelaire. Estas eu já conhecia um pouco de leitura superficial que fizéra na província, levado pelo enthusiasmo essencialmente communicativo de um meu amigo, Emiliano Pernetta, que chegava de S. Paulo, em periodo de ferias. As duas obras seduziram-me a tal ponto que eu reneguei as mathematicas e resolvi en­ tregar-me de corpo e alma á literatura, partici­ pando isso mesmo a quem me cumpria dar sa­ tisfação a tal respeito. Dahi por diante entreguei-me ao estudo das sciencias, da philosophia e da literatura em ge­ ral, com a decisão e o ardor proprios de quem julga que emfim encontrou o seu caminho. Ao mesmo tempo ia produzindo alguma coisa, mais verso do que prosa, então. Não devo calar que Alberto de Oliveira, e Machado de Asis um pouco, principalmente na sua traducção d’0 Corvo, de Edgar Poé, exerce­

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ram a maior influencia de que me lembre, tratando-se de auctores nossos, nas minhas producções dessa época. E claro que depois disso, convivencias e tan­ tas outras leituras vieram que foram actuando e têm vindo a actuar mesmo até hoje na minha formação. De quantos amigos intellectuaes tenho podido contar, nenhum como Cruz e Souza, por exemplo, concorreu principalmente para me dar estimulo e inspirar-me paixão na minha phase de combate aqui no Rio. Mas quando nós nos encontramos, as minhas tendencias j áse acha­ vam definidas nas suas linhas geraes. Foram, pois, esses de que acima falo que me deram o que se chama o impulso inicial. Das minhas obras qual a que prefiro? Sempre tive predilecção pela que ainda não produzi. As outras só em dias especiaes é que as posso reler. Depois, não me parece que va­ lha a pena falar de coisas que fiz, tendo eu sem­ pre a impressão de que o publico não se lembra delias, tanto mais que a maior parte dos leito­ res as desconhece por completo. Si atravessamos ou não um periodo estaciona­ rio em literatura ? Estamos mais ou menos nas mesmas condi­ ções de todo o occidente. Neste instante é mais em Roosevelt que se concentra a attenção uni­ versal, representante como elle é, ainda não de uma característica renascença, mas de um mo/

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mento de crise, o planeta inteiro achando-se na perplexidade de quem não sabe ao certo para onde irá. Ha forças poderosíssimas em acção—ha o mo­ vimento industrial e o movimento socialista; mas quem pode connhcer antecipadamente o que vai resultar da incubação formidável a que as­ sistimos ? Parece que o mundo terá dentro em pouco o seu eixo de influencia inteiramente deslocado da posição em que se achava, e o .governo da humanidade irá cahir em outras mãos que não aquellas de quem mais dependeu até agora a marcha da civilisação. Mas até que ponto e como essa deslocação se ha de produzir ? Quaes os seus resultados prá­ ticos ? Que abalos ou cataclysmas hão de provir d ahi, que modificações soflrerá com isso a geographia política e até o destino das diíferentes racas humanas ? Nós outros, brasileiros, não temos sido de todo indiíferentes a essas graves preoccupações. A maior parte dos nossos escriptores, é certo, poetas, auctores de contos, romancistas, ainda obedecem ao programma de ha vinte ou trinta annos atrás. Seus amores, ou então o esplendor da nossa natureza e a poesia dos nossos costu­ mes, os absorvem quasi por completo. Elles são mais ou menos parnasianos no verso e natura­ listas fazendo contos ou romance. Como exem-

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pío, dois excellentes auotores, Alberto de Oli­ veira e Coelho Netto. Mas ha outros que já acordaram mais viva­ mente para a hora. Por emquanto, preoccupado franca e directa­ mente com essas perspectivas de que falo, so ha um livro de arte, — C,do S Aranha. O romance tolstoista, , do Snr. Curvello de Mendonça, tambem é característico do momento, embora mu ilo pouco no Brasil, onde ainda nem quasi se pensa sobre essas coisas. E de citar tambem A America Latina, do í)r. Manuel Bomfim, corajoso livro de critica e doutrinamento, palpitante de actualidade. Além desses, ha outros que igualmente vêm a sua hora, porque nascem das circ*mstancias da occasiao. Por exemplo, producto da indecisão ou per­ plexidade de que l'alei, e do nervosismo que ella determina, está-se creando ein todo o mundo um novo ramo literario, que, bastardo como seja, merece no emtanto esse nome, quando pra­ ticado por homens de talento e de capacidade artística. Refiro-me á literatura de informação, aos productos de interessantes reportagens, pri­ meiro publicados na imprensa e depois colligidos em volume, abrangendo os mais varios e, ás vezes, os mais curiosos e importantes assumptos. Ora, As Religiões no Rio e este livro em que r

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v. me dá a honra de collaborar, pertencem ao genero, e, como eu já disse noutra occasião,não encontram competidores no nosso meio. De modo que de v. também se póde dizer que é legitimamente um representativo. Os trabalhos criticosdos Snrs. José Veríssimo, Sylvio Romero e Araripe Junior, homens, todos tres, que estudam incessantemente e têm o senso do tempo em que vivem, devem ser por isso mesmo considerados como agentes positivos na nossa literatura. Seria injusto não lembrar o apparecimento de um livro de muito valor, e com elle o de uma forte individualidade, até então ignorada, como era a do Snr. Euclides da Cunha antes de publi­ car Os Sertões, que é a obra a que me refiro. As valiosas paginas desse seu volume inicial, além do raro rebrilhamento da fórma, são con­ cebidas num espirito todo moderno, de informa­ ção e psychologia que procura ser honesta e certa, de um realismo, ás vezes mesmo de um pessimismo, que fazem violento contraste com as basofias, de boa fé, porém ingenuas, que tanto caracterisam a atmosphera do segundo rei­ nado. Mas nem por isso se deixa de sentir que estes inflexíveis, talvez mesmo ás vezes dema­ siado rigorosos, modos de ver do escriptor de hoje, nascem do mais fundo e sério sentimento de amor e interesse pela terra brasileira que um filho delia possa nutrir.

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Também o bom livro do Snr. Oliveira Lima, No Japão, é obra lida enlre nós com o mais justo interesse. Elle nos poderá aproveitar não pouco no decisivo momento que atravessamos. Não devemos, por fim, esquecer aqui o grupo de jornalistas que ora mais influencia estão exer­ cendo em nosso meio; é com toda razão que elles conseguiram esse predominio. Homens do talento e preparo de Alcindo Guanabara, Eduardo Salamonde, Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac e alguns mais, obteriam vencer em qual­ quer parte, uma vez coliocados na imprensa. Menos politicos do que tiveram de ser os jor­ nalistas de ha quinze annos atrás, os Quintino, os Patrocinio, os Ferreira de Araújo,, os Ranjel Pestana, mais desillusionados e realistas, em todo caso elles são os representantes dos novos ideáes de accordo com o espirito da época. Hoje nos é talvez mais indispensável acom­ panhar este ultimo e precaver-nos á altura das suas exigencias, do que o era a própria obra da abolição e a victoria do principio republicano. Sem estas duas coisas a nação poderia perfei­ tamente subsistir então,emquanto que ella corre hoje em dia riscos os mais sérios, si não souber ver a hora e não tiver a energia necessária para collocar-se como exigem os seus problemas vitaes. H claro que de quanto se faça em letras, quer /

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no novo sentido, quer continuando ou comple­ tando a obra que foi a novidade anterior, só o que seja realisado superiormente é que ha de ficar, como sempre tem acontecido. Digo isto, meu caro João do Rio, para responder ao seu ultimo quesito dos que se prendem a esta questão. Não me parece que os centros literarios con­ stituidos nos Estados de ha uns annos para cá offereçam tão cedo o perigo ou a vantagem—con­ forme se encare—de crear literaturas á parte. O centro, seja como fòr, ainda exerce tal in­ fluencia sobre a peripheria em nosso paiz, que Estados lia onde se é mais orthodoxo em rela­ ção a uns quantos preconceitos creados nos grupos literarios do Rio, do que mesmo aqui. A creação desses centros prova, pois, que elles, na sua maioria, não são mais do que pro­ ductos de imitação, devidos á influencia da nossa Academia de Letras. Terminando, sobre a questão de saber-se si o jornalismo é um bom ou máo factor para a arte literaria, direi que si elle não existisse, si a evolução das coisas já tivesse podido eliminal-o, substituindo-o por instituição melhor, seria bem bom para a arte literaria. Mas como isso ainda não se realisou, e pelo contrario, o jornalismo resiste de cada vez mais vivaz, parece-me que boje ella não o pode dispensar. Muito cordialmente ».

PEDRO DO COUTO

O Sr. Pedro do Couto, critico bem conhecido, manda-me estas opiniões sensatas e cheias de discreta reflexão : « Correspondendo ao vosso gentil appello, passo a responder o que julgo cabivel nos mol­ des do questionário que me foi presente. No primeiro quesito pedis-me indicação dos auctores que mais influiram para a minha for­ mação literaria. Ser-me-ia diííicil, mesmo quando fôra de grande monta o meu valor nas lettras, tal dizer, visto que a nenhum dos mestres ou dos chamados taes devo determinada orienta­ ção. Iniciado no dominio da mathematica e tendo, portanto, o espirito educado convenientemente, fácil me foi julgar com precisão dos trabalhos literarios cuja leitura fiz. Em uns apreciava o vigor da fórma, a elegan­ cia doestylo; em outros, o valor da these estu­ dada e o brilho com que era apresentada. Ne­ nhum delles, porém, cooperou para o meu juiso esthetico, de modo a filiar-me a tal ou qual orien-

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tação literaria. Tendo noção assentada sobre a funcção da arte e seu destino, julgava as obras que lia segundo o modelo philosophico de an­ temão traçado. Ora, assim sendo, facilmente comprehendereis que era mui precaria a influencia que em mim poderia produzir qualquer auctor, por mais valor artistico que a evidencia mani­ festasse. Penso ter respondido á vossa primeira pergunta do modo mais consentâneo com a minha indivi­ dualidade e segundo a interpretação que dei ao espirito do quesito. Em relação ao 2o, cumpre dizer-vos que não dou aos meus trabalhos importancia tão su­ bida que valha uma preferencia por este ou aquelle—reputo-os todos ephemeros, sem ne­ nhum destaque especial.Resta-me, no entretanto, a consoladora certeza de que nas condições dos meus se acha a mór parte dos que por ahi andam , sem excluir, é bom lembrar, os de muitos meda­ lhões pretenciosos. A estes, coitados! nem sequer resta a conviccão da mediocridade de seus esforços intellectuaes. Bom seria que a minha franqueza actuasse de algum modo em muitos dos nossos contempo­ râneos que a ignorancia própria e de seus iguaes arvora em esthetas e mesmo em ‘ mestres. De mestres só têm a catadura e a empafia, porque lettras e sciencias, sobretudo estas, andam delles tão afastadas como nós do Sol. O

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Deixemol-os, porém, em paz, e continuemos nossa palestra. O 2o quesito exige resposta mais detalhada, o que passo a fazer-vos gostosamente. No momento actual, no Brasil, dá-se um facto de ordem sociologica mui natural : como deveis saber, o movimento esthetico, em todas as suas modalidades, é funccão do movimento social. O conjunto reage sobre as partes, deter­ minando esta ou aquella manifestação, neste ou naquelle typo. Assim sendo, as grandes obras d’arte só se podem eífectuar quando a situação social o impõe taxativamente. Ora, o periodo de dissolução que atravessa o mundo moderno não póde determinar o apparecimento de obras de relevância, capazes de por si sós caracterisar uma época, isso não só em nossa Patria, como mesmo nas nações que occupam a vanguarda do movimento progressivo. Posto assim o problema, julgo que a situação—da poesia, da prosa, da musica, da pintura e da esculptura no Brasil como na Europa, tem de ser, na melhor das hypotheses, um apuro de factura, nada tradu­ zindo que manifeste grandeza de concepção. Quanto á existência de novas escolas, e lá luta entre ellas, cumpre que eu estabeleça uma preliminar:—que se deve entender por escolas? Existem ellas bem discriminadas? No rigor do termo, não existem escolas; e quanto á sua difFerenciação é mais apparente do '

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que real. Notam-se maneiras diversas de , modos diversos de expòr o pensamento, em re­ gra, sempre o mesmo. A luta é, pois, entre indi­ viduos, como representação de modos de ser li­ terarios. A um exaggero de fôrma oppõem alguns um completo deleixo delia, como sendo a verdadeira arte. A uma crueza de expressão, tocando as raias da licença, como alguns comprehenderam o realismo, segue-se um emmaranhado de pala­ vras, procurando veladamente traduzir sentimen­ tos dos chamados, permitti que os englobe, nephelibatas. Os primeiros deleitam-nos muita vez pelo vigor da fôrma, pela correccão do estylo; os segundos inebriam-nos com a musica de suas palavras. E claro que, assim dizendo, me refiro aos primazes, únicos que podem servir para uma analyse precisa da these que propuzestes. Como vêdes, não ha entre elles distinccão de principios, de idéas, de orientação—divergem exclusivamente na maneira de exprimir os mes­ mos pensamentos. Pedis-me entre os contemporâneos brasilei­ ros os representantes dessas pretensas escolas. Entre os poetas cultivadores da pura fôrma, occupam logares Salientes os Srs. : Alberto de Oliveira e Olavo Bilac; entre os modernos, salienta-se Cruz e Souza. Representando um facto único no nosso meio r

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C) M O M l i .V r U

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literário, destaca-se o Sr. Luiz Delfino, que vem atravessando todas as correntes, revelando semj)re uma pujança intellectual digna de admi­ ração. Dos romancistas filiados ao primeiro agrupa­ mento, evidencia-se pelo vigor do talento o Sr. vluizio de Azevedo, hoje infelizmente demasiado entregue ás suas funcções consulares; da se­ gunda categoria não ha, que eu saiba, nenhum romancista que possa ser considerado typico. No romance, porém, obedecendo a uma orien­ tação social, isto é, tendo em vista a solução do problema moderno, já se começa a sentir algo O de interessante:—cansados de fazer arte pela arte, espíritos emancipados da rotina, tendo estudado a crise que assoberba a sociedade mo­ derna, entregaram-se á solução da questão, pondo seus méritos literários ao serviço do mo­ vimento de reforma, que se impõe de mais em mais. Discorde eu embora das soluções apresen­ tadas, pouco importa; o que é innegavel é que uma preoccupação alevantada os impulsiona, libertando-os da esterilidade a que se veriam entregues não fora um nobre amor pela especie a que pertencem. Pelo numero se não salientam elles, mas pela qualidade são dignos de nota. E vesocollocar entre estes o Sr. Graça Aranha, cujo livro é mais, a meu vêr, uma apolo­ gia bem escripta, com muito estylo, do gennaO

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nismo, como poderá sentir quem imparcialmente ler Chanelan.Não sei mesmo porque o classificam como escriptor socialista, classificação esta que o nieu pobre espirito ainda não poude compreliender. Nessa categoria podemos, no entretanto, incluir os Srs. : Fabio Luz e Curvello de Men­ donça, cujos trabalhos, se não têm o vigor de fôrma de n,cousa aliás fácil de adqui­ a h C rir, obedecem, todavia, á determinada orienta­ ção, prégam novos ideaes, propugnam pela refor­ ma da sociedade mercantilisada em que vivem. Em referencia ao 4o quesito, tenho a responder-vos negativamente. De facto, não creio que os Estados possam crear literatura sua. Isto admittir seria desconhecer a influencia que a Capital Federal exerce intensamente nos varios departamentos do Brasil, em todos os ramos de actividade. E ella que, como intermediaria, lança aos Estados, mais ou menos modificados, os fructos do meio literario europeu, sobretudo francez. O que se poderá talvez dar é haver nos trabalhos literarios alli surgidos urna certa cor local, isto é, certo cunho regional em que as paizagens e os costumes respectivos sejam apre­ sentados com carinho, seja dito de passagem, bastante acceitavel e até necessário. Nunca, porém, poderá existir uma literatura em cada Estado, o que desde hoje, com os ele­ mentos existentes, se pode terminantemente assegurar.

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Eis-me, finalmente, chegado á ultima inter­ rogação que me fizestes. Perguntais-me sí « o jornalismo, especialmente no Brasil, é um factor bom, ou máo, para a arte literaria. »—En­ carado como funccão habitual, evidentemente anniquila boas vocações literarias, obrigandoas a trabalhos ligeiros, ao sabor do publico, de quem se torna cada vez mais dependente. As­ sim considerado, prejudica de lacto o jornalismo a boa literatura, o que infelizmente se accentua em um forte crescendo pela maneira por que se o faz modernamente, em que se exige mais um bom repórter do que um Optimo redactor. Sí o encararmos, porém, como meio mais simples e mais prompto de entreter entre o li­ terato e o publico convivencia necessaria, inilludivelmente serviços reaes elle presta ás le­ tras. Se não fôra elle, como poderiam começar a apparecer bellos talentos que posteriormente chegam a impór-se até aos editores? Sim; não fòra elle, como conseguiriam impri­ mir seus trabalhos intelligencias que surgem, mas que os gananciosos editores não conhecem e a quem, portanto, não acolhem sequer com a devida cortezia? Não, meu talentoso confrade, seja como fôr, não podemos negar que o jornalismo é um fa­ ctor favoravel ao desenvolvimento das boas le­ tras em nossa Patria. Com maxima lealdade e tão resumidamente O

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quanto possível, penso ter respondido ás vossas interrogações. O * Isto feito, ponho-me, como sempre, á vossa disposição. »

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O insigne auctor do Pan-Americanismo responde-me coni unía ionga carta em que dá expli­ cações e leves conselhos. Infelizmente responde apenas a dois quesitos. Sobre o jornalismo, o pensador illustre d iz: « Depois da descoberta da imprensa e outros meios de cominunicação do pensamento, a instruccao scientiíica, estlietica, moral e philosopliiea passou da-escola para o jornal. A escola deixou de ser um instrumento de cultura, um factor de progresso para se restringir a ensinar a ler e a escrever machinalmente palavras. íloje a instruccão transbordou da escola e espalhou-se pelo vasto campo da vida; boje soba urna escola na altura dos tempos modernos, que é o jornal, escola rsem penas discip en i-g su nares, escola verdadeiramente livre, que o alumno não é obrigado a frequentar, que pene­ tra todos os dias pelas janellas no interior do lar como os raios do sol, escola que é a maie elevada expressão das relações livres entre as

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pessoas, umas que sentem necessidade de apren­ der, outras de ensinar... » A respeito da sua formação literaria, o pliilosoplio é mais extenso. « Não sei se posso falar em formação litera­ ria; porém, a instrucção que possuo devo mais á natureza e á vida do que aos mestres e aos livros. Em regra, tive péssimos professores, com excepção do velho José Soares de Azevedo, que me ensinou portuguez e francez, e do dr. José Austregesilo Rodrigues Lima, que leecionava philosophia como os philosophos antigos—por amor á sciencia. Até onde vae a claridade de minha memória, posso dizer que a Capunga com a doçura e poe­ sia de sua paizagem foi a matéria prima de minha educacão. Evocando as pessoas e as coisas no seio das quaes passei minha infancia, não diviso as pri­ meiras senão através de densas brumas, de vagas nebulosidades, emquanto a natureza se me apresenta ao espirito com toda a elegancia de suas fôrmas, com todo o brilho de suas côres, com toda a suavidade de seus perfumes. O eu é menos independente do mundo exte­ rior do que geralmente se pensa. Nós commungamos com a natureza até m e s m o depois da morte, a integra potestade que reslitue á terra o que veiu da terra, e com a podri8 /

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dão dos corpos produz o fermento de todas as incessantes metamorphoses, de todas as fecun­ das eclosões. Não é na escola que se aprendem as verda­ deiras lições de coisas, e sim na vida, a grande mestra de tudo que existe no mundo. Que me seja permittida a tão espontânea quão sincera confissão retrospectiva, que vou fazer, a qual, valendo como penitencia, serve ao mesmo tempo de prova do que venho affirmando. Assim é que não faço theoria pedagogico-phiiosophica, mas falo por experiencia propria. Todos os dias, pela manhã, surgia, como por encanto, no terreiro de casa o vencedor nunca vencido das capoeiras vizinhas. Era um formoso gallo, que contava as victorias pelos logares por onde passava, e se orgulhava de ser o terror dos poleiros. Imaginei que era preciso decretar a paz para os gallinheiros, como a Convenção decretou a victoria paraa França, e deliberei queimar o bico, cortar os esporões e arrancar as garras do in­ vencível guerreiro. Foi o que fiz certa occasião, em que haviam sabido todos os de casa; mas o radiante triumphador, com o bico queimado, as garras e os esporões decepados, caminhando tropegamente, afigurou-se-me um monstro, e minha alma in­ gênua de criança um monstro ainda mais hor­ rível.

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Depois, como se não bastasse aquella figura de Bank para meu castigo, disse-me o dono do animal :—Olhe, se apanho o malvado que prati­ cou tamanha perversidade, corto-lhe as orelhas. A’ noite, custei muito a dormir, e quando pela madrugada conciliei o somno tive um horrivel pesadelo. Sonhei que estava com as ore­ lhas cortadas; e se realmente não as perdi, sen­ tenciou no dia seguinte minha Mãe, não foi por­ que não merecessem ser arrancadas a puxões, mas para que as sentisse arder todas as vezes que me lembrasse daquelle crime. Outro exemplo illustrativo : aos dez annos, quando entrei para a escola, pois meus paes tinham tido o bom senso de não me subtrahir durante a primeira idade ao viver livre, que a natureza impõe ao desenvolvimento da infancia, eu não sabia A nem B; mas em compensação conhecia toda a passarada, desde a fúnebre co­ ruja até ao petulante beija-flor. Ora, em face de todas as galas e esplendores da avifauna pernambucana, que encanto podiater para mim a aula com o seu monotono e aborre­ cido B... A—BA? O preto Calixto era um grotesco typo de mes­ tre-escola : usava cartola cinzenta, casaca preta e calças brancas. Compromettera-se com meu pae a ensinar-me primeiras letras em troca de uma flauta de ébano com chaves de prata. A seducção do campo, trepando-me nas arvo­

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res, enchendo os bolsos, e ainda mais o estomago, de fructas, espreitando os passaros, per­ seguindo as borboletas, inspirava-me horror a escola. Entretanto, o Laurentino, cria de casa, filho mais velho da escrava Antonia, era accusado de distrahir-me dos estudos com a sua estimada criação de canarios brigadores, e, em um bello dia de sol, bem me recordo, ao voltar da escola, ja não encontrei ás voltas com os seus queridos passarinhos o Laurentino, que havia sido em­ barcado para o Sul. Com os olhos cheios de lagrimas, abri a porta das gaiolas, e deixei ganharem o espaço livre aquelles outroscaptivos. Desde aquelle momento fui abolicionista de coracão. ò No curso de preparatórios o livro que con­ correu mais para a formação de meu espirito foram as Fabulas de Phedro. E um livro, em cujas paginas se reflecte niti­ damente . a Natureza como em um espelho, e que não se pode dizer escripto para a escola e sim para a vida. D.Quijole de la Mancha, com seu inseparável companheiro dejornada, o pacato Sancho Pança, e a formosa Dulcinéa dei Toboso, tão radiante como só podia imaginar o cerebro exaltado de seu incomparável cavalheiro, marca a segunda etape de minha evolução intellectual. Miguel Cervantes, provocando o riso a custa

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das loucuras e ridículos humanos, ha feito mais hem a humanidade que todas as escolas, em que o professor abomina o riso e está sempre disposto a sacrificar a originalidade e mais attri­ butes superiores á submissão a umas tantas conveniências, que não raras vezes tocam as raias da hypocrisia. A disciplina baniu da escola a funeção do riso, (¡liando é o riso que torna o homem superior aos outros animaes. lia coisas na vida que somente se corrigem a custa de muita garga­ lhada, e o riso, pode dizer-se, é exclusivo da especie humana. Entretanto, o professor, por força da disci­ plina escolar, capricha em não rir, muito embora o riso seja o mais poderoso e humano instru­ mento de seleccão social. Um outro gênio, que produziu em meu espi­ rito uma verdadeira embriaguez intellectual, com o nectar de seu divino humour, foi Henri Heine, auctor de Alta Troll, satyra política superior a tudo que tem sido escripto a respeito desde Aristophanes. ISTo ponto de vista philosophic©, devo tudo, por um lado a Kant e a Tobias Barreto, por outro iaclo a Spencer e Sylvio Romero. Taes foram os elementos que concorreram para a formação de minha acanhada cultura de espirito ». E concluindo a tratar de preferencias literaO

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rias, com uma habilidade de diplomata deante do impossível, Arthur Orlando termina : « Julgo-me incompetente para responder a este quesito. É uma questão difíicil de resolver como os casos .dados para concursos de vigários. Ensinou-me, porém, o meu professor de Direito Ecclesiastico que desde longa data a jurisprudencia canônica instituiu a prohibição dos actos emulativos, negando o direito, que envolve peccado. Para que se construir um edificio, que é in­ útil ao proprietário e prejudicial aos vizinhos? A Egreja resolveu bem que é preciso não consentir a abertura de janelias, que, no dizer do ponderado Cino de Pitoia, não tem outro fim senão descobrir os segredos dos frades ou devassar a mulher bonita do vizinho. Tenho as minhas sympathias, mas entre umas e outras mon cocur c, ou melh ln a b umas e outras confesso francamente, estou como o burro de Burindan, o mais philosopiio dos burros : não sei para que lado me vire. Porém, que importa que entre as minhas sympathias meu coração oscille? O pendulo do relogio oscilla constantemente de um para outro lado, e nem por isso os pon­ teiros cessam de ir sempre adiante e as horas de correr velozes como que tangidas por invi­ sível mão de fugaz divindade.

PADRE SEVERIANO DE REZENDE

Encontrei o padre Severiano preoccupado com a traducção de Isaias. Esse escriptor rea­ lista, como elle o julga, tem tido até hoje traducções abjectas. O padre, com as suas finas mãos, trabalhava o buril da fórma na vernaculisação da prosa ardente. — Já pensei na u,sabes? , etiq O padre Severiano de Rezende, um raro ta­ lento, fala suavemente, com a voz passada em seda. E, porém, o nosso Huysmans. São bem conhecidos os dotes violentos do seu estylo combativo e plethorico. Ha paginas nas suas historias de santos que lembram o La Bas. Ainda últimamente, contando a virtude de um asceta venerável, aííirmava que o pobre homem se entregava a esbornias cie jejuns. São bem notáveis as suas preciosas qualidades oratorias. Ha tempo, em Nictheroy, tendo que prégar, e como a multidão não fizesse silencio para ouvir a sua homilia, ergueu-se e, com voz return-

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bante, disse: — Meus senhores. Apresento-lhes um dileinma. Ou os senhores calam ou eu rne re tiro! Sei por consequência que vou ouvir de Severiano coisas imprevistas. — De S. Paulo mandaram-te muitas respos­ tas? pergunta o padre. Não mandaram. Era na­ tural. Eu expatrio S. Paulo do Brasil. Houve um tempo que a Paulicéa era um viveiro de poetas e prosadores. Tempos idos! Hoje ha na Acade­ mia uns bacharéis em germen muito bem ves­ tidos e muito pedantes, e o escol literário vive em retiro. No emtanto, em S. Paulo podia haver um grande movimento literário, havendo lá, como ha, talentos raros. Não falo por exemplo de um Garcia Redondo, que é o archetypo do imbecil relapso na sua mania de literatejar à outrance, mas sí eu disser que em S. Paulo ha um Freitas Valle, um Antonio de Godoy, um llerculanode Freitas, que são esthetas a valer, todos comprehenderão que a Paulicéa podia brilhar nas letras. E temos ainda como poeta e como chronista Adolpho Araújo, que tem sonetos que eu assignaria e prosa que rivalisa com a de qualquer bom prosador excellente. Ha poetisas também : Francisca Julia, por exemplo, que não tem comtudo originalidade e vive a imitar todo o mundo, o que não acon­ tece com uma outra poetisa, muito bizarra crea-

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tura essa, —Athalia Bianchi-Betoldi, que faz de vez em quando uns sonetos dignos de serem lidos. Houve uma pausa. Eu estava atordoado. — Has de me perguntar porque é que estou esquecendo o Wenceslao de Queiroz?Mas este, meu caro, é super-abominavel. Pretencioso e or­ gulhoso, este detestável escriba é capaz de ma­ tar a quem disser que os seus versos são máos. E não ha quem os faça peior, fazendo-os, com abundancia, ha mais de trinta annos... Hoje toda a gente o deixa versejar livremente, nin­ guém faz mais caso delle. A verdade é que S. Paulo possue condições para lá se crear um núcleo litterario e não o cria. E hoje um po­ vinho de rastacuéros... Parou : a catilinaria acabara. O padre apanhou a manga larga no seu gesto habitual e deu dous passos. Estava seraphicamente calmo, e sorria. Atrevi-me a indagar. —Então, desde que começamos por S. Paulo, as literaturas dos Estados?... Severiano interrompeu-me. —Eu detesto tudo quanto é centro literario, como detesto tudo quanto é conciliábulo de li­ teratos em via de perpetrações literarias. Como penso que o talento que é real tem fatal­ mente que se revelar na hora marcada, acho toleima essas concentrações perigosas de plumi­ tivos que ensaiam vòos em gremios. Os gremios

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dos Estados são focos de insupportaveis espe­ ranças das letras e acostumam o espirito á es­ treiteza das egrejocas em que o elogio mutuo cria irreductiveis pedantes e pretenciosos mestrunculos de synagogas improductivas, em que se cultiva a flor da rlietorica convencional. A prova é que tudo quanto é talento aqui não se formou em centros literarios. O talento apparece quando tem que apparecer, e a sua evolu­ ção por meio dos centros literarios é uma.illusão. Os centros literarios dos Estados são perigosissimos e alarmantissimos. Acho bom não bulir nisso. E horrivel. Começo a ter medo de continuar. Entretanto, tento uma perguntasinha vaga : —Atravessamos um periodo estacionario para as letras? —A prosa estacionou como um navio entre gelos, e quanto á poesia, as lyras estão por alii penduradas. Não vejo nada de novo, de original e, sí urnas tentativas surgem, são esperanças que ainda não se corporisaram. Os representantes da prosa, entre nós, quaes são? Eis o nome de Ruy Barbosa. E um escriptor que se deixou hypnotisar pela molle archeologica dos bons clás­ sicos que a gente desinfecta antes de manusear, para que o archaismo não venha agitar, no nosso estylo, os seus lenços de alcobaça. Ruy Bar­ bosa agora não passa de um Cuvier das letras, não é um revivedor de fôrmas, é um excavador /

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SEVERIANO DE REZENDE

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de formulas. Ha Machado de Assis : a gente o lê confiantemente, a sua psychologia calma calça uma fôrma elegante, e a sua linguagem, que é delle, podia ter por divisa o consistit virtus, que, sí não enthusiasma, não escandalisa. E o unico prosador honesto que temos e o unico observador de almas que possuimos. Mas não è um profundo. Aluisio Azevedo zolaisou assás, num estylo em que eu reconheço o relampejo de um estro real. Depois desta tirada, vulcanicamente, o padre Severiano começa a distribuir prêmios de lou­ vor aos seus amigos e cacetadas nas pessoas com que não sympathisa. Assim na prosa João Luso tem fleugma e é chic, Bilac encantador, Coelho Netto vibrante e merece o nome de artista, Euclides. Cunha é vibrante. Araripe Junior é o unico critico que se pode ler, pois tem argúcia, graça, leveza e clareza; Sylvio é redundante e labyrinthico, mas em todo caso hercúleo e poderoso; José Verissimo arqueia-se sysiphicamente sob as densas arroubas dos seus periodos plúmbeos, eriçados de ângulos. Na poesia Alphonsus de Guimaraens é um genio, Bilac o primeiro, Raymundo e Al­ berto também primeiros, Luiz Delphino é o incomparável nababo da poesia, Cruz e Souza teve influencia, Emilio de Menezes pode ser chamado o mestre bohemio do soneto, B. Lopes é adoravel na sua pose, Luiz Murat... /

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O MOMENTO LITERARIO

O padre Severiano não termina a lista, des­ animado. —Eu não posso evidentemente lembrar-me de todos! confessa com amargura. Ha tantos poetas, tantos prosadores ! Mas falas da poesia de acção ? Essa poesia é tola. —E quanto a escolas ? —Creio que não as houve no Brasil, ao menos que se não queira chamar de escolas—conjunctos de imitadores de Castro Alves, o insupportavel metralhador de syllabas, os nephelibatas, etc. De novo, Severiano faz-me o elogio do pro­ digioso Alphonsus de Guimaraens. Eu indago: —Deve ser curiosa a sua formação literaria? —Eu positivamente não sei bem como foi a minha formação literaria. Não estou mesmo certo sí houve ou sí ha em mim isso que o amigo chama respeitosamente « uma formação literaria ». Só sei de uma cousa : é que desde cedo tive sempre uma insaciável necessidade, ou para melhor dizer, uma intensa ancia de cul­ tura, que me levou a lêr, lêr, lêr, e dessas lei­ turas varias, mas bem orientadas, me ficaram, creio, uma esthesia e um estylo—esthesia ainda a corporificar em synthese e estylo ancioso de realisar a Fórma. A minha formação literaria é feita pois de um amálgama em que são ingre­ dientes as obras-primas que eu admiro e que eu amo. Porque eu entendo que a coisa literaria, O

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PADI5E SEVERIANO DE REZEXDE

como os dilettantes a tomam, será sempre mes­ quinha e desinteressante si não fôr elaborada com o intuito de reproduzir o Bello, e o que reproduz o Bello é a Obra Prima, ou seja pala­ vra falada ou escripia, ou seja som, côr, linha ou bloco. Por isso é que esta expressão « for­ mação literaria» me sôa mal. « Formação literaria » parece querer indicar pretenciosamente o quer que seja que se assemelha, verbi á « collação de gráo »; ha nessa formula de aula de rhetorica, um perfume de bacharelice compenetrada da sua canonisação literaria. Fico, por conseguinte, tonto, instado para dizer quaes os auctores que mais contribuiram para a minha formação literaria. Estou certo que o Sr. barão de Loreto ou o Sr. barão de Paranapiacaba, versicultores cobertos de cans, não hesitariam, um minuto, na resposta. Eu hesito, porque, francamente, não tenho formação literaria, e acho que ninguém deve tratar de ter. A minha formação literaria é isto : uma grande revolta e uma grande aspiração—revolta contra o pedantismo inactivo do medalhão e a maçonaria nulla das côteries, aspiração á luta sincera pela Arte e pela supremacia do Talento. A. minha formação literaria inspira-se pois nessa direccão e a minha doutrina bebo-a nas fontes supernas que borbulham nos pincaros : Ho­ mero, Eschylo, Virgilio, Dante, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac, e, sobretudo, a tout *

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seigneur tout honneur,Ricardo W mestre dos mestres, o colosso sobrehumano, o descobridor dos novos-mundos da Arte, o único a quem é imprescindivel pedir licença quando se quizer dissentir de idéas. De novo ahi vulcanicamente, Severiano distribue louros aos escriptores contemporáneos que mais admira. Começa assim : —Está claro que não despreso Hugo... Cita Peladan, Huysmans, Lecomte, Verlaine, Mallarmé, D’Annunzio, Flaubert, Chateaubriand, Ileredia, Petrarcha, Poé, e termina aggredindo os homens que fazem selectas de auctores cele­ bres. —Esta exploração no terreno de Charles An­ dré pode tentar o Sr. João Ribeiro, a mim não me tenta. Resta-me fazer uma pergunta—a da influencia do jornalismo. Padre Severiano de Rezende, jornalista, responde assim : —O jornalismo no Brasil é para a arte bom e máo. No estado actual da nossa cultura, é o jornal que se lê mais, e não o livro. Quem qui­ zer, pois, fazer alguma coisa pela arte—exten­ sivamente considerada—ha de ter um jornal em que escrever. Nem a revista nem o folheto preenchem a funcção do jornal, que é o que todos lêem. O poeta ou o prosador que quizer vêr a sua obra passar de coisa escripta a coisa

PADRE SEVERIANO DE REZENDE

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impressa tem que se submetter ao jornal. O jornal é inevitável, precisamos soffrel-o. E elle que abrirá caminho ao livro, ou me­ lhor, é elle que tem aberto caminho ao livro. Entretanto, para quem vive disto, de escrever para a imprensa, não ha nada peior, como meio esterilisante e dispersivo. Esterilisante, porque o trabalho aujour le jour esgota as forças des­ orientadas e exhaure o tempo desmethodisado; dispersivo, porque não admitte a reflexão, a concentração da idéa, o apuro e o esmero da Forma, que é a ambição de todo artista. Assim, o jornalismo é um tactor bom, porque é só por elle que o artista se pode manifestar, e é um factor máo porque, como Saturno, devora a vida dos seus proprios filhos. Que bello não seria haver aqui no Rio um jornal em que um grupo de artistas mostrasse que è ainda pelo jorna­ lismo que, entre nós, poderia um estheta viver e trabalhar, illuminando almas e arejando espí­ ritos. E o meu sonho em breve realisavel. E Severiano termina com essa esperança.

GUIMARÃES PASSOS

O Sr. Guimarães Passos é o conhecido poeta dos Versos de um Simples e das Horas Mortas. Ultimamente publicou um Diccionario de Rimas. Alagoano, Alagoas tem por elle a mais pro­ funda admiração. Ha na terra do marechal Fioriano centros literarios, clubs de propaganda, o diabo, com o nome de Guimarães Passos. Cremos mesmo que se fundou agora, na capi­ tal do Estado, uma sociedade recreativa Home­ nagem a Guimarães Passos. Outro dia encon­ trei na mala do Correio um masso de jornaes com o seu endereço. O conterrâneo encarrega do da expedição não se pudera conter e escrevera :—Ao immortal poeta Guimarães Passos... Sebastião de Guimarães Passos sente-se bem nesta atmosphera e corresponde á admiração da terra com um carinho especial. Quando lhe entreguei o questionário disse gravemente : —Vou pensar. Dous dias depois não se lembrava mais. O

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GUIMARÃES PASSOS

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—Oh! filho, é verdade, amanhã sem falta. Afinal, uma tarde de chuva, sentados ambos diante de um « bock », o poeta desdobrou imperialmente o questionário e julgou-o irrespondivel. —Muito diííicil, meu caro, muito diílicil. Para a sua formação literaria quaes os auctores que mais contribuiram? Sí eu fosse res­ ponder, diria : O primeiro poeta que eu li e admirei, ainda na escola, foi Nicolao Tolentino. —Ainda hoje a influencia se faz sentir. — Depois li Camões e Bocage. Finalmente comecei a estudar o grande padre Antonio Vieira. Guimarães Passos tem uma absoluta adora­ ção pelo extraordinario prégador, o maior di­ plomata e o maior artista da lingua portugueza. Sabe-lhe sermões inteiros de cór. —Está a primeira pergunta respondida. —Quanto á preferencia pelas minhas obras, tenho quatro volumes publicados. Aqui o poeta fala vagamente dos seus versos, das criticas elogiosas, dos prefacios celebres no mundo, de Araripe Junior, que lê muito... — Das minhas obras gosto da outra metade—■ a metade que o publico não gosta. E obscuro mas chic. Bato palmas. — Cá temos a segunda resposta. —O Brasil atravessa um periodo absoluta­ mente estacionario. Não ha lutas de escolas,

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não ha mesmo escolas novas, poesia de acção e outras historias. Ainda estamos com que os traquinas de café chamam os velhos—Aluizio Azevedo no romance, Bilac e Alberto de Oli­ veira no verso. Neste ponto Guimarães Passos dá as suas im­ pressões sobre os homens representativos da literatura patria :—Coelho Netto, por exemplo, é um admiravel artista, mas não é um roman­ cista; Aluizio não tem um romance verdadeiramente romance com a nota individual; Araripe Junior anda a Ler tanto que acaba não sabendo como escrever. A impressão da França esmaga tudo. — E a literatura dos Estados? — Uma blague. Não é possivel. —E o jornalismo? —O jornalismo ? —E um factor bom ou máo para a arte lite­ raria ? Guimarães Passos diz duramente : —Péssimo. O jornalismo é o balcão. Não pode haver arte onde ha trocos; não pode haver arte onde o trabalho é dispersivo. E, abrindo os braços, Sebastião de Guima­ rães Passos conclue uma terrível catilinaria contra o jornal. Ai de n ó s ! 0

CURVELLO DE MENDONÇA

0 Sr Curvello de Mendonça estende-se Iongamente : O

I Este primeiro quesito reporta-me a um tempo já afastado, longínquo, impalpável, de que me resta boje apenas urna consciencia nebulosa, mas ainda assim carissima ao meu espirito. Evoca-me a bucólica vida provinciana, os nobres esforços de um pai amante das letras, grande espirito de phiiosopho, tolhido em meio de sua carreira scientifica pelas necessidades da vida material. Eis ahí o vago e indeterminado theatro em que se me descerraram os horizontes intellectuaes. Em casa faziamos todos os irmãos os pri­ meiros tirocinios de estudo. Era uma escola viva e espontanea, onde os nossos mestres liam comnosco os livros didácticos, os romances e as revistas. Os v iserá M , de Hugo, e os Mys­ teriös cio Povo, de Eugenio Sue, lembram-me

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ainda como as leituras mais decisivas na for­ mação de meu espirito actual. Era o mesmo paé, mestre e amigo, que nos iniciava no cultivo dos bons auctores, commen­ tando as passagens empolgantes, vivificando maneirosamente os seus ensinamentos, construindo suavemente a sua boa philosophia da vida, que se traduzia e expressava no amor dos homens, dos animaes e até das coisas ambientes. Era isso em plena roça, numa fazenda modestissima de assucar, no seio amplo e livre desse norte brasileiro que dá o fogo crepitante das seccas e queimadas, mas que produz igual­ mente o mel dulcuroso das abelhas e o da canna. Esse foi o primeiro núcleo de minha for­ mação literaria, sí é que tenho uma, tanto a julgo ainda imprecisa e falha. Tudo o mais quanto veiu ao depois-outros homens, outros ares, outros livros-dilataram os raios da mi­ nha visão objectiva. E, como est lectu quod prius non eritn sensu, d’ fu idéas, novas concepções em debate, empolgandome a alma sonhadora e contemplativa de meri­ dional, mas, prescrutando-me bem dentro do intimo, tudo vejo partindo d’ali, d’aquella escola de amor, daquelle céo estrellado e sereno, a quem atirei os primeiros anceios dolorosos de minhas rudes e prematuras meditações. Tenho dito, pois, qual a fonte onde bebi a primeira agua que me fez saltar para a vida. o

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Os caminheiros que, pelos dias adiante, nella tenho encontrado, muitos são e de varios pen­ sares. Cada homem, cada livro, cada aconte­ cimento de pequena circ*mstancia, em que me achei envolvido, constitue certamente urna nova fonte onde bebi um pouco com tal ou qual soffreguidão. Por finí, tantos foram os mananciaes, que lhes perdi a conta e o nome. Com firmeza, com sinceridade, só me posso reportar a uní forte elemento creador da minha desva­ liosa formação : aquella primeira fonte límpida, doce como o niel das abelhas e o da canna, fonle pura onde quizera beber sempre toda a minha vida.

II Evito dizer-lhe qual das minhas obras pre­ firo. Seria urna coisa triste e desinteressante ao leitor acompanhar-me nessa miragem subjectiva, nessa contemplação intima dos meus passos de escriptor incipiente. Tenho publicado treslivros, e sí de nenhum delles me envergonho hoje, não os tenho como padrão de gloria na vasta cultura literaria do paiz. Deram-me elles a alegria extraordinaria da producção, esse prazer ingenuo e simples, que independe do acolhi­ mento da critica e do meio. Sou, aliás, um optimista irreductivel. Por mais humilde que seja a minha parte na litera9.

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tara moderna do meu paiz, julgo-me fartamente, sobejamente pago dos meus esforços e do meu trabalho. Escrevendo sem ambicionar triumphos, pro­ curando apenas enveredar pela trilha de uma literatura util, quero dizer, de um exercício intellectual applicado ás necessidades sociaes, tive a felicidade de receber a sympathia e o estimulo em proporção tal que jamais poderia imaginar. Attribúo essa generosidade ambiente á corrente de idéas que defendo e que julgo bas­ tante espalhadas no Brasil, mesmo muito mais espalhadas do que geralmente se acredita. Quasi não ha dia em que a leitura ou a observacaõ me deixe de trazer novos factos e documentos em abono dessa verdade para mim incon­ cussa. Este paiz é fadado a realisar o sonho do pa­ raíso humano. Não digo que seja isto amanhã; mas digo que isso será, não porque me queira dar ares de propheta, mas porque observo em redor e vejo uma somma maravilhosa de esfor­ ços latentes que se fazem heroicamente nesse sentido. Ila coisas que não vemos, porque não queremos olhar. O Sr. José Veríssimo disse uma vez que o christianismo puro, o christianismo sem padres nem dogmas, o christianismo su­ blime á maneira de Tolstoi, não tem cabimento em nosso meio, é uma coisa que « oífende ao sentimento do real ». Não é elle só que assim o

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pensa, bem o sei eu. Alguns outros, não em grande numero, subscreverão o seu juiso ; mas eu acredito que estão redondamente engana­ dos. O seu talento e a sua observação estão voltados para coisas diversas. Não reparam bem os factos e as correntes sociaes que trabalham a nossa civilisacão. A doutrina de Tolstoi não é privilegio delle nem da Rússia. Si no Brasil, assim como na Franca e em todo o mundo civilisado, toda a gente lê e aprecia Tolstoi, é porque elle soube traduzir em boa linguagem moderna a anciedade universal dos povos. As mesmas forças sociaes actuam em toda parte. Renova-se o mundo inteiro em busca da solidariedade e do amor puro nas relações humanas. 0 Brasil também vai sendo ha muito tempo abalado por taes idéas. Ha cerca de vinte annos, uma modesta moci­ nha de S. Paulo acolheu em seu coracão de virgem o doce socialismo christão. Que poderia fazer essa debil forca de mulher, si o seu sonho fosse um desvairamento incompatível com o meio brasileiro ? Pois bem. Essa joven delicada e meiga traba­ lhou a principio só. Fez-se professora parti­ cular e publica, escreveu livros, abriu escolas para instruir as crianças e educar a mulher bra­ sileira, retirando-a da confabulação miserável nos confessionários dos padres. E preciso reparar O

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nesse facto, que é expressivo. Os sacerdotes se levantaram e moveram-lhe urna guerra estú­ pida de todos os dias, servindo-se da ignoran­ cia e do prestigio rotineiro das formalidades do culto catholico. A mocinha fraca não esmo­ receu. Lutou, persistiu, venceu. Fez discípu­ los e discípulas numerosas. Só na capital as suas escolas sustentam e educam perto de dois mil alumnos. Pelo interior do Estado nascem e multiplicam-se escolas filiaes da propaganda central tenacíssima de D. Annalia Franco. Ninguém no Rio de Janeiro falou nisso. Oslivros, os romances e a revista, que essa brasileira no­ tável tem escripto e dirigido, nem um só mo­ mento appareceram em nosso meio literario, porque c proprio das coisas serias e profundas /vicejarem modesta eoccultamente. O Sr. Verissimo e os outros críticos ignoram tudo isso. Que importa! A obra não fica sendo menor, nem menos valiosa. Quando no futuro essas coisas apparecerem, toda a gente se espantará, duvi­ dando da realidade. Entretanto, a coisa está ali em S. Paulo. Nin­ guém a vê, porque não quer ou não sabe. Ha poucos annos, também, morreu na Bahia Luiz Farquinio, que ahi fez uma obra semelhante, diíferente nos processos, igual no fundo e no pen­ samento dominante. Da suaimmensa fabrica fez uma vasta escola de amor e trabalho. E1pos­ sível que não tenha deixado continuadores en-

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tre os discípulos numerosos, por elle salvos da ignorância e da miséria ? Duvido, porque acre­ dito no contrario. No Rio Grande do Sul, em Pernambuco, e até em Sergipe, ha esforços mais ou menos vastos para um semelhante trabalho social. Que importa, si os nossos intellectuaes do Rio de Janeiro fecham os olhos a essas coisas? Digo somente que a vaidade e o orgulho cegam desgracadamente os homens de mais talento e O * saber. Foi o meu justamente esquecido romance, Regeneração, que me poz no encalço desses mo­ vimentos fecundos, que agitam a sociedade bra­ sileira. Muito mais do que poderia acreditar, toquei nessa ordem de idéas e de aspirações, que já tinham orgãos numerosos disseminados emtodos os âmbitos do nosso paiz. Vi então que o meu trabalho era apenas o eclio amortecido de uma força pujante que anima o nosso povo. Eis porque, consciente da nullidade literaria daquelle romance, sou entretanto apaixonado ardentíssimo das idéas que nelle puz. Por ellas, tenho amigos desconhecidos que me communicam os seus esforços e as suas impressões, embellezando-me a vida e dando-me a coragem de trabalhar com um prazer encantador, que não trocaria pelas glorias mais retumbantes no mundo da arte. A literatura não é g meu fim. Si a faco um +

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pouco, é como um instrumento de acção social, aliás bem menos poderosa, assim feita, do que por outros meios de propaganda e luta, que outros homens e mulheres assombrosas empre­ gam com successo neste mesmo Brasil. III Creio, pois, muito felizmente, em face do que fica dito, que não atravessamos um periodo estacionario para as nossas letras. E o contra­ rio que succede: movimento e vida, comojamais o tivemos em outra qualquer época. O Brasil todo se agita em urn trabalho pujante de renovo e progresso. Não é só no Rio de Janeiro que a vida económica e industrial se expande, como parece que acreditam alguns enclausurados da rua do Ouvidor e da Avenida Central. A novidade das coisas reflecte-se nos cora­ ções e nos espíritos. Abrem-se novos horizontes aos moldes acanhados da velha literatura. Passaram os clássicos, os románticos e as pequeninas escolas realistas, naturalistas, simbolistas, e outras, mais ou menos extravagantes e pre­ carias. O que hoje se ensaia, se esboça e já se faz, é alguma coisa de mais forte e grandioso do que essas tentativas de urna literatura em formação. E o Brasil que adquire a consciencia de si mesmo e aborda as grandes correntes universaes do pensamento moderno. Somos mais /

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nacionaes assim, isto é, sendo mais hábeis e mais originaes na collaboração que prestamos ao movimento mundial. Emquanto a Europa nos manda o excedente da sua população, acaso desejando retalhar-nos em pequenas colonias, o Brasil absorve essas gentes todas que lhe chegam da Italia e da Allemanha. As nossas escolas são o grande 1‘actor activo dessa nacionalisação empolgante. E o Brasil, de todos os paizes novos, aquelle em que o estrangeiro se sente mais a vontade, onde menos existe o preconceito de côr, de raça ou de fortuna. A nossa joven literatura reílecte já esse sopro augusto de fraternidade. Não é so de uns tres ou quatro annos a esta parte, como pensam alguns, que se far entre nós o romance e a poe­ sia de acção. A não ser que se queira fazer questão de palavras, menosprezando as idéas, essas coisas se encontram já, em lampejos geniaes, nas poesias de Castro Alves, Gonçalves Dias e Domingos de Magalhães, assim como nos poemas de Basilio da Gama e Varella. Ape­ nas, agora, o movimento é mais consciente o energico na geração de novos que nelle toma parte. Os críticos, que dessas coisas se incumbem, menoscabam orgulhosamente dos pensadores e literatos dos Estados. Cada novo dia, entre­ tanto, vè surgir um novo batalhador. Alguns se

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revelam com vigoroso talento e uma capacidade forte de trabalho. E difíicil e perigoso citar no­ mes, como pede o quesito, pelo risco de se commetterem injustiças; mas as promessas alii estão vibrantes. O Brasil é um ¡inmenso campo verde que aspira cobrir-se de flores. As sem*ntes foram plantadas, chega a hora pressurosa da colheita. Seria preciso uma critica nova, partindo dessas mesmas correntes, para dar-nos conta dessa pha­ lange de trabalhadores. Não mais os ciúticos frios com as suas criticas frigidíssimas, pesadas e accommodaticias. Essa velha arte está agonisante. Com excepção dos conscienciosos estu­ dos, infelizmente raros, de Araripe Junior, delia se salvam apenas os materiaes amassados no desalinho e na indilferença, que [precisam ser refundidos por um espirito de amor. A velha critica, repito, está morta. Os seus livros dogmáticos e oraculares dormem pelas livrarias em companhia das traças. E os antigos editores já lhe torcem a cara, convencidos afinal da sua inutilidade. Havemos mister de alguma coisa mais bella, mais humana, uma semelhança dos Precursores e Revoltados, de Eduardo Schuré. Elysio de Carvalho, em um livro de critica original, completamente diverso do que se tem feito entre nós nesse ramo da literatura, pare­ ce bem tel-o comprehendido com o seu talento agudo e a sua alma vulcanica de apostolo dos

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novos ideaes. Pelo que vi, pelo que se acha par­ cialmente publicado de sua formosa obra, não trepido em consideral-o como um dos inicia­ dores de mais essa campanha, a investigação carinhosa das nossas correntes sociaes, que o joven Brasil pede anciosamente. Pedro do Couto, que é um positivista livre, desabusado e ardente, sabendo separar o joio do trigo, tem no prélo um livro congenere, cujo conteúdo desconheço ainda. Mas considero a concepção positiva da arte como a mais bella, a mais vasta e a mais grandiosa que se tem imaginado. E urna das faces mais geniaes, talvez a única que se possa acceitar sem restricções, da immensa obra de Augusto Comte. Tenho, pois, que seja uma novidade auspiciosa para as nossas letras o apparecimento de um livro bafejado por essa influencia, aliás pertur­ badora e nociva a outros respeitos. A sua critica ampla e erudita, talhada por um largo sopro social, será mais um golpe na outra : a velha, a sediça, a fóssil, a inútil e felizmente moribunda. Trabalhos assim feitos deixam de ser superfetações livrescas, porque têm-os seus logares previamente indicados em a nossa moderna lite­ ratura. IV Não creio que esteja na indole dos brasileiros

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tentar a formação de literaturas estaduaes 011 provincianas. Ao contrario de muitos outros, penso que fóra do Rio de Janeiro se fazem muito bellos trabalhos literarios; mas todos esses movimentos particulares se prendem ao movimento geral das nossas lettras. A formosa lingua de Camões e o sentimento innato da unidade nacional, que todo o bom brasileiro em regra possúe, salvam-nos dessas velleidades ridiculas de literaturas divergentes. Nem ha entre nós razão histórica que assim o determi­ nasse. Nenhuma das nossas antigas provincias realisa no Brasil o caso da Polonia que, opprimida e esmagada pela Russia, conserva por isso mesmo a sua literatura e as suas tradições par­ ticulares. Quasi todos os nossos grandes Estados tiveram, ou vão tendo, as suas épocas mais ou menos importantes de actividade literaria : Babia, Minas, Maranhão, Pernambuco, São Paulo, e até um pouco tambem o Rio Grande do Sul, o Pará e outros. Podos esses movimentos, porém, passam ou se deslocam, e o seu acervo apro­ veitável se incorpora afinal no patrimonio commum da literatura brasileira. Não vejo symptomas que nos façam receiar phenomeno diverso para um futuro proximo. Nos recantos do interior, pois que tenho via­ jado um pouco, hei visto muitos letrados des­ conhecidos devorando anciosamente as vil tiO

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mas novidades da casa Garnier. Os romances de Machado de Assis, as grammaticas de Maximino Maciel, Hemeterio dos Santos e João Ribeiro, até as Paginas de deste ultimo, penetram as populações ribeirinhas do São Francisco. E inacreditável, diante disso, que essas mes­ mas gentes abandonem os seus mestres, os seus idolos queridos, para fundar literaturas serta­ nejas. /

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V Mais algumas palavras para satisfazer ao ultimo quesito. O jornalismo é uma força, o grande instrumento de acção social nas socie­ dades modernas. Ora, de que uma força é mal empregada ou dirigida, não se póde nem se deve concluir que ella seja ruim. Acontece isso, muitas vezes, com a imprensa. Mercantilisam-na, exploram-na os vendilhões do templo. Mas é necessário reconhecer os seus serviços prestados á literatura brasileira. Quasi todos os nossos homens de lettras, os mais eminentes, os mais activos, passaram pelo jornalismo. Coelho Netto viveu e vive nelle, e d’ahi mesmo retira os seus romances e os seus contos finamente lavorados. O mesmo se pode dizer, mais ou menos, de muitos outros. Quem póde negar a influencia civilisadora do jorna­ lismo nacional, conhecendo os grandes talentos

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que ahi afiaram as suas armas e, por elle, exer­ ceram tão poderosa acção na vida intellectual brasileira? Evaristo da Veiga, Patrocínio, Buy Barbosa, Alcindo Guanabara, falando somente daquelles que rapidamente me occorrem, póde ser que tivessem feito alguns livros a mais, si não fôra a absorpção da imprensa. Duvido, porém, que houvessem sido mais uteis. O trabalho diuturno e exigente do jornal conduziu esses e outros espíritos a acompanha­ rem de perto a vida nacional. Batendo, insis­ tindo, ensaiando, sondando o terreno e apal­ pando as idéas, fizeram o que não cabe fazer aos isolados, que escrevem pachorrentamente no conforto dos gabinetes domésticos. Sem a imprensa, o Brasil não seria o que é hoje, as nossas letras não poderiam ter chegado ao que são agora. Não acredito, portanto, que o jornalismo seja inimigo da literatura, sobretudo si não se quizer circ*mscrever e limitar essa palavra ao dominío restricto de romances e poesias. Muitos romances, aliás, escreve um grande publicista nas paginas dispersas dos jornaes. E’ a vida do paiz, em suas variadas faces, que elle ausculta todos os dias. Si o faz superiormente, com amor e a sêde ardente do progresso, muitos erros se lhe devem perdoar. São agentes mais poderosos do nosso movi­ mento literário do que os egoístas que, iil-

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sensíveis ao meio, de quando em quando se apresentam, vaidosos, de ponto em branco, com um livro na mão. Esses livros, algumas vezes, são tão uteis ao Brasil... como á China. Assim respondo eu, sem suspeição, porque não sou jornalista.

FELIX PACHECO

O Sr. Félix Pacheco é, como toda a gente sabe, urna das figuras proeminentes do sim ­ bolismo. Em tempos que já lá vão, o bizarro poeta foi quasi o sacerdote magno de urna Igreja que tinha por Deus Cruz e Souza. Era a época da nevrose. Os literatos andavam pelos jardins dos delirios, surgiam diariamente re­ vistas em que o núcleo nephelibata esgrimia tendo na dextra o cacete do desaforo mostrado com orgulho ao vacuo, e afivelado á sinistra, o broquel d’oiro da rima exótica. O medievalismo, o intencionismo e outros males provenientes do preraphaelismo carcomiam a alma dos infantes poetas, e todos esses infantes, alguns dos quaes ainda nos preparatorios, eram de urna ignorancia religiosa e sesquipedal. Um desses meninos vociferava de manhã á noite, na rua do Ouvidor, os quatro pontos cardeaes da poesia universal, os quatro grandes e assombrosos genios da rima. Sabem quaes eram esses pontos cardeaes?

FELIX PACHECO

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Homero, Dante, Shakespeare e Cruz e Souza! Tudo o mais cavalgaduras! Foi nesse meio que appareceu o Sr. Felix Pacheco. Mas, emquanto os outros eram o cachoeirar de uma escura agua que pára, espuma e em espuma se perde, elle trazia nalma, além do branco lirio do sonho, figura da rhetorica symbolica, a capacidade de Vencer. A capacidade de Vencer é cousa relativa. Ha por este mundo muita gente empregando o verbo. O Sr. Felix Pacheco, entretanto, venceu como queria vencer, com a consideração, o applauso e o carinho dos que o eircumdam. Homem emtaescondicões devia ser fatalmente um orgulhoso. Juntem a isso a certeza de que o Sr. Felix Pacheco é redactor do Jornal cio Commercioy profissão que tem a propriedade de des­ envolver nos seus possuidores a hypertrophia da vaidade e uma altissima noção dos proprios méritos. O Sr. Felix Pacheco guarda um certo orgu­ lho, isto é, manifesta um certo egoísmo numa larga e acertada cultura do seu Eu; mas longe de se solemnisar, como lhe ordenava a boa sorte acarinhadora, continua fe batalhador Logo depois d eme mandar sentar numa das cadeiras do seu severo gabinete, o joven poeta põe os dedos nas cavas do collele, um collete lindo, e falia : —Não acredito que a prosa e a poesia contemO

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poraneas no Brasil atravessem um periodo esta­ cionario, pois, tanto importa no absurdo de acre­ ditar que no começo de século XX, em urna era de vida intensa e num paiz que não é propria­ mente a Botoculandia, o pensamento parasse! O estylo, a Botoculandia, o absurdo, annunciavam urna descarga, eram o esperado introito combativo. Approximei a cadeira. — Então ha escolas? — Escolas? Mas o meu amigo está doido! Approximei ainda mais a cadeira. — Pois haverá ainda quem acredite em escolas? Recuei a cadeira. Iiein ? O chefe do symbolismo sem escolas? Deus louvado! afinal encontrava a franqueza, essa coisa tão rara que nem o proprio Diogenes se achou com coragem de a pro­ curar ! OSr. Félix Pacheco passou os dedos pela face escanhoada, limpou o pince-nez. — 0 triumpho hoje é do individualismo. Isso de grupos literários são verdadeiras lérias para embahir meninos. A única escola que conheço no Brasil é a dos alhos com bugalhos. —A dos alhos? — Sim, quero dizer a Academia. — Oh!

—Qual oh! meu caro! Essa escola nem síquer tem mobília, soffre de um mal que não sei sí existe em medicina, mas que é positivamente a tuberculose dos recemnascidos.

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—Nossa Senhora! —Qual Nossa Senhora! Medeiros e Albuquer­ que, que é director da instrucção, faria uma obra de caridade sí olhasse um pouco para a pobresita. Porque com o Zé-Verissimo, positi­ vamente a coisa não vae lá das pernas! —Mas o Dr. José Veríssimo... —O homem é dos taes que não enchergam uma pollegada adeante do nariz. Dahi talvez seja preferível : é o caso do « quanto peior, melhor ». Os immortaes já tiveram casa e fran­ quia postal... Interrompo o poeta de súbito : —Quaes foram os auctores que mais contri­ buiram para a sua formação literaria? O Sr. Félix Pacheco pára; um leve sorriso põelhe no labio o amargor da ironia. Que pensará elle?É lá possível saber o que pensa um homem por mais que o interroguemos ? Entretanto, a sua voz rouca perde os tons de colera, e elle começa num ar de narrador, o ar que teria o eminente membro da Academia, Sr. Silva Ramos. — Sí não fôra o receio de que me tomasse por vaidoso, dir-lhe-ia que só dous auctores con­ correram para a minha formação literaria : o Amor, que é a razão de tudo, e o Tempo, que é o melhor mestre, o único talvez capaz de ensinar como havemos de dizer o nosso segredo á vida. 10

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O ¡MOMENTO LITERARIO

Significa isso que evolui como deve fazer quem quer que traga na cabeça um sonho de arte. Este pedacinho grácil e perfumado é breve como os oasis na terra do sol. O Sr. Félix volta para mim o seu olhar. — Estou a vel-o explicar com ironia que fui militante e esforçado amigo de contendas e des­ composturas, com a pretenção de quem vinha botar abaixo a Academia e salvar o mundo da grande praga dos Signos. Que quer? No Rio as cousas são assim. Quem deseja vencer, deverá começar demolindo, porque, no íim de contas, só essa furia iconoclasta póde ter a virtude de arrombar a porta e facilitar a entrada. Fóra disso, o que resta é apenas a do­ cilidade passiva, o respeito aos medalhões, a subserviência miserável e ignóbil—elemento seguro e infallivel para a subida rapida. Imaginem o atroz dilemma! — Devora ou és devorado. O poeta continúa, entretanto. — Não sei quaes os auctores que mais con­ tribuiram para a minha formação literaria. Sei apenas que essa formação, ainda não ultimada, lia de proseguir como começou, isto é, num vòo livre, soberano, para a suprema belleza, que é tão inattingivel como o sol, mas que constitue, como elle, a explicação da vida, a luz, a gloria... Parece um discurso. O Sr. Félix Pacheco,

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porém, desce dos páramos onde voava e, mais razoavel e humano, acaba concordando com algumas influencias menos elevadas. —Recordo-me, entretanto, de alguns poetas que foram ou são de meu agrado e com os quaes talvez tivesse tido, em épocas successivas, e ainda hoje tenha, a illusão de haver encon­ trado longínquas afílnidades. —E quasi pol-os á margem. E quaes foram? —fa*gundes Varella, o meu predilecto em criança; Lamartine, Hugo, Richepin, Luiz Delfino, companheiros das noites de vigilia do internato, e finalmente Baudelaire, Rimbaud, Regnier, Quental, Francisca Julia, Cruz e Souza, C. D. Fernandes. —Ora esta! —Para desencargo de consciência devo accrescentar que, a despeito de minha boa vontade, ainda não consegui ler nem Gonçalves Dias nem Machado de Assis... —Qual prefere das suas obras literárias? Sinto que esta pergunta enternece o poeta. A sua voz avelluda-se, e, enleiado numa suave modéstia, elle diz devagar : —E boa... Das minhas obras? Mas esta phrase é o preludio de uma berceuse que começa pianíssimo, tem de vez em quando accordes violentos, e cujo desenho é o arabesco subtil da consciência censurando por chic coi­ sas que ella, a consciência, acha razoaveis, boas

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O MOMENTO

LITERARIO

oa talvez, quem sabe? para a idade, mesmo muito boas... —Ainda não tenho obras. Espero ter. Por ora nada do que escrevi merece tão pomposa deno­ minação. Obra é o que fica. Na minha bagagem ha por emquanto meros ensaios. Estreei com um folheto ruim, em prosa detestável e verso peior, as C h icota d s, que escrevi por occasião da morte de Ganovas. É um mixtiforio de collegial apressado... Ahi o primeiro forte na orchestra : —Talvez um pouco no genero das Vergastas do meu cordial inimigo, o Dr. Lucio de Men­ donça, que aliás nunca tive a fortuna de ler, ao contrario do que acontece com as Harmonias Errantes do Dr. Francisco de Castro, amigo e quasi parente de um conhecido hom*onymo de um illustre ministro do Supremo Tribunal... E a berceuse recomeça : — Fiz depois 0 Publicista da tra­ balho de jornal, com dia certo para ser publi­ cado. Releio ás vezes o volume e, palavra de honra! não desisto de tirar lhe algumas infanti­ lidades, retocal-o, amplial-o e fazer delle uma Obra, quando mais não seja, em homenagem aos reparos e á sarabanda tremendíssima de um certo jornalista meu amigo, que viera das mesas do café Paris e irrompera desabusado pela Cidade do ,R io numa fulgurante promessa altos vôos...

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Outro vòo! —Traduzi as homilias de piedade, de Bossuet; atamanquei uma versão da Verdade, de Zola; escrevi o Périplo de para a edição especial que o Jornal deu no dia do Centenario. Mas tudo isso precisa de largas emendas e correcções... Em 1901 publiquei Via Crucis, que não é positivamente uma obra. O meu romantismo ficara na collecção do Debate, sepultado juntamente com um amor que era feito de mel rosado e borboletas. A critica applaudiu o volume, mas, em meio desse coro de bênçãos, houve um berro que me descon­ certou um pouco. Com uma ingenuidade de Calino meditei na razão do necrologio e vi que o homem não deixava de ter razão : o contra­ peso do assobio é necessário para que as palmas não embriaguem... O facto é que ViaCrucis não era sem fa e tanto assim que depois de publicado ainda emendei muita coisa, como terá occasião de ver na edição definitiva. Dei finalmente o mque ors-A M , é de hontem e a respeito do qual julgo desnecessária qualquer referencia... A pagina melhor de Via Crucis é o Symbolo dos Symbolos; em MorsAmor o que mais me agrada é a Canção do Louco. Tenho dous livros de prosa que ainda não sei quando virão a lume, mas que se acham é

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promptos; Robles e Cogumellos (figuras contem­ poráneas) e Cartas de Amor (prosa passional). A berceuse terminára. Iamos recomeear as £ coísas graves. —Não lhe pergunto o que acha do jornalismo. —O jornalismo, como o praticam hoje na Europa e um pouco por toda a parte, é unía grande escola. A elle devo tudo o que sou e tudo o que aprendi. Dirão que entre nós ainda paga muito mal, mas é bom não esquecer que estamos num paiz de analphabetos, onde a cir­ culação das grandes folhas é verdadeiramente irrisoria. Toda a melhor literatura brasileira dos últimos trinta e cinco annos fez escala pela imprensa. Uma ou outra excepção servirá ape­ nas para confirmar a regra. Raros são oshomens que não maldizem a própria profissão. Eu não penso assim... — O jornalismo é um vehiculo de Suggestões, como me disse o mago Shondall. Acha que seja o vehiculo para a formação de literaturas estadoaes, para a poesia scientifica, para o romance social? O Sr. Félix Pacheco riu. —Não creio que no Brasil o romance social de coisa melhor que o Chanaan, obra estupenda e gloriosa. Ignoro o que significa poesia de acção. Deve ser muito complicada, mais com­ plicada e obstrusa que a musa scientifica do

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Sr. Martins Junior ou cio que as Rezas do Diabo cio Sr. Wencesláo de Queiroz. Sei que houve uma Mina no Pará, como sei que ha varias minas por este Brasil afora; sei também que houve uma Paclaria no Geará, cousa naturalíssima onde quer que chegue um pouco cie farinha de trigo; mas nenhuma dessas, ao que me conste, deu indicio de creaoão de lite­ ratura á parte. Na Bahia ha escriptores de mérito; em São Paulo e Paraná também. E pos­ sível que o tempo e o meio estabeleçam differenciações, mas a verdacle é que estas ainda não appareceram. E o Sr. Felix Pacheco levantou-se. Estava muito bem disposto. Eu também. E talvez, quem sabe? aquelles a quem zurzira...

SILVA RAMOS

Silva Ramos é modesto e delicado, quasi tao modesto quanto delicado. Conversa como sí es­ tivesse no salão de Mine Geoíírin, em pleno XVIII seculoj usa um bigode branco que lembra o de Edmond Goncourt e a sua voz guarda um sonoro sotaque alfacinha. Como é possivel que esse hornem, sendo professor, tendo concorrido para a piethóra de bacharéis, conserve a inal­ terável distincção e a aristocrática affabilidade ? Não ha no mundo coísa que mais enerve do que ensinar meninos, e estou em acreditar Silva llamos capaz de resistir a tão exhaustiva exis­ tencia pelo seu rico temperamento lyrico. Silva Ramos é talvez entre nos o ultimo dos románticos, com todo o seu encanto, o seu im­ previsto e o filagranado subtil de ironia e amor que fez Theophile e fez Musset. A sua arte pode delinil-a um periodo de Jules Laforgue : — Faire partir l’esthétique de l'amour.

A sua modestia como a sua delicadeza são indefiniveis.

SILVA RAMOS

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E delle esta encantadora carta de tão fino sa­ bor literario, que acaba a gente até por admi­ rar a Academia de Lettras: « Não lhe parece, meu amigo, que um poeta lyrico, corno eu, poderia bem escusar-se de responder a um interrogatorio da natureza do seu, muito interessante, embora? Embaraço-me logo na primeira pergunta: « Para sua formação literaria quaes os auctores que mais contribuiram? » Na formação de um poeta lyrico, que eu saiba, influe exclusivamente um único auctor: o Auctor da creação, que fez o céo, o mar, os bosques, osrios, semeou no ether as estrellas, póz o per­ fume ñas flores, deu ás aves o canto, coloriu de tons roseos a aurora, derramou a plenas mãos o oiro fulvo dos poentes, tudo isto illuminado pelo olhar da mulher, ente singular em quem se resumem todos os encantos, em cujo seio se engendra o amor, com todos os refinamentos imaginados pelas filhas de Eva, desde Maria Magdalena até Santa Thereza de Jesus. Quando ainda não tinha vinte annos, adoptei por epigraphe de um livro de versos aquillo de Musset: Je n’ai jamais chanté ni la paix ni la guerre. Si mon siécle se trompe, ¡1 ne m’importe guére.

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L’amour est tout; Aimer est le grand point.

Cahiram-me os críticos em cima, vaticinándo­ me que nunca seria nada, porque não possuia a comprehensão dos grandes problemas em cuja solução a humanidade se debate. De facto, nunca fui nada, mas, como não acabo de me convencer que a minha insignificancia tenha sido motivada por aquella falha que os críticos me assoa­ lharam, já agora não hei de largar o estribilho : L’amour est tout; Aimer est le grand point.

A segunda interrogação já ficou implicita­ mente respondida ; do Auctor da creação a me­ lhor obra é a mulher. A’ terceira apenas me permitto aífirmar que no quartel-general das lettras, mais conhecido pelo nome de Academia Brasileira, nada consta oílicialmente sobre refregas ou simples esca­ ramuças travadas entre escolas literarias, de modo a vperturbarem o doce somno a que se julgam com direito em toda a parte do mundo as instituições desta natureza. Demais, brigas de literatos poderá havel-as, lutas de escolas é que não; por muitíssimas razões, das quaes apontarei apenas a primeira : é que no Brasil não ha escolas. Sí polemicas houvesse, é claro que a razão estaria com certeza da parte dos que pensam como eu, e que seriam elles os vencedores;

SILVA RAMOS

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porque muito ha que eu estou convencido desta verdade profundíssima, que constitue o prin­ cipio fundamental da critica entre nós : os nos­ sos amigos são uns genios, os outros são todos uns alarves. Para satisfazer ao quarto quesito, direi que, não existindo, de modo nenhum, no Brasil, pelas condições inherentes á sua natureza, o que se chama uma literatura, o perigo de lite­ raturas provinciaes, com tendencias emanci­ padoras e absorventes, só se póde desenhar no horizonte como visão de cerebros doentes. Por ultimo : « O jornalismo, especialmente no Brasil, é um factor bom ou máo para a arte li­ teraria ? » Distingo : Para a arte literaria é máo, para o literato é bom. Para a literatura é um factor máo, porque a feição essencialmente mercantil das folhas diarias, revelada nas pequeninas preoccupações de furos,curiosidades de senho visinhas, folhetins de sensação, ao paladar das creadas de servir, é absolutamente incompatível com a idealisação da arte pura, no sublime des­ interesse com que se ala aos mundos superiores, toda ella desprendida das miserias terrenas. Para o literato é um optimo factor, porque, facultando-lhe um emprego de repórter ou de noticiarista, quando mais não seja, colloca-o ao abrigo das primeiras necessidades, tornando, para sempre, impossível a reprodu-

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O MOMENTO LITERARIO

cção do quadro lendário : o poeta morrendo de lom e...» Já é uma utilidade descoberta com tão fino humour por Silva Ramos,principalmente quando os jornalistas mesmo não sendo poetas esperam a todo o instante fazer o quadro vivo :—o jor­ nalista morrendo de fome aos pés dopublico...

GARCIA REDONDO

O auctor das Caricias e da Botánica Amo­ rosa é dos que primeiro respondem á minha caria. Em S. Paulo, redigindo a Folha , professor, cheio de aílazeres, Garcia Redondo manda-me esta curiosa resposta em 8 de março : — Parasua formação literaria mais contribuiram?

os auctores que

R esposta.—Esta pergunta offerece-me

pre­ texto e opportunidade para uma confissão que eu ha muito desejava fazer. A minha formação literaria tem o seu alpha na leitura do Álmanachde Lembranças, isto em 1867. Nesse tempo cultivavam-se com enthusiasmo a charada, o logogrypho e o enigma, e esse genero de diversão, que o Almanach vulgarisou e poz em moda em Portugal e no Brasil, attrahiu-me e instruiu-me. Para obter decifrações com relativa facilidade, foi-me preciso estudar a historia, a geographia, a fabula, as sciencias naturaes e a lingua verná­ cula. Conquistei com esse estudo uma grande cópia de conhecimentos que outros, na minha o

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O MOMENTO LITERARIO

idade, não tinham. Era, nesse tempo, estudante em Coimbra e companheiro de casa de Gonçal­ ves Crespo e de João Penha. A nossa « repu­ blica », installada na casa das velhas Seixas, á rua da Couraça de Lisboa, era frequentada pela elite intellectual de Coimbra. Entre outros, iam alli diariamente Guerra Junqueiro, ainda imberbe e aspirante a homem de lettras; Candido de Fi­ gueiredo, poeta então e hoje philologo; Frede­ rico Laranjo, prosador de pulso; Simões Dias, poeta lyrico dos melhores que Portugal tem tido; Caetano Filgueiras, brasileiro e poeta; João e Manuel de Campos Carvalho, mineiros e excellentes prosadores; Macedo Papança (hoje conde de Monsaraz), já poeta e muito democrata então; Silva Ramos, auctor dos Adejos; Sergio de Castro, prosador e poeta; e outros que pres­ tavam culto a João Penha. Eu era menino de 13 annos e assistia cheio de curiosidade ás dis­ cussões que se travavam no quarto de Penha ou de Crespo, por entre a fumarada dos cigarros, sobre escolas literarias ou sobre livros recempublicados. De outiva, ia aprendendo muita cousa e ganhava gosto pelas letras. A , a famosa Folha de João Penha, surgiu por essa época, e a leitura desse hebdomadario literario despertou-me o desejo de com pôr e de escrever. Fiz os meus primeiros versos que João Penha e Crespo corrigiram e, logo depois, tive a co­ ragem de fundar com Silva Ramos, Bittencourt

GARCIA REDONDO

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Rodrigues, Macedo Papança e Sérgio de Castro um periodico literário— 0 Peregrino—que sahia quinzenalmente. Esse peregrino audaz sahia pela mesma porta que atirava á grande circula­ ção a appetecida Folha de João Penha! Para fa­ zer o periodico, para ter idéas e dar-lhes fórma amena, senti a necessidade de lêr poetas e pro­ sadores. Comecei pelos portuguezes e passei logo depois aos francezes, lendo-os em versões e no original. Ramalho e Eça acabavam de publicar no Diário de com grande successo, o celebre M ysda Estrada de Cintra e encetavam a publicação das Farpas em pequenos fascículos. Urbano Loureiro mantinha no Porto uma revista satyrica e hu­ morística—Os gafanhotos, cuja feição me agra­ dava. A prosa tersa destes homens e a poesia de João Penha, Crespo e Simões Dias faziam as minhas delicias. Gonçalves Crespo ainda não tinha publicado as Miniaturas, mas exhibiase na Folha, onde os seus versos eram lidos com applausos geraes. Era, nesse tempo, nosso cônsul em Lisboa o barão de Santo Angelo (Manuel de Araújo Porto Alegre) que, ao receber O Peregrino, me enviou as primeiras palavras de animação que tive na minha vida literaria e que me aconselhou a que lêsse poetas e pro­ sadores brasileiros, citando os que eu devia ler de preferencia. Li os que consegui obter : Gonçalves Dias,

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O MOMENTO LITERARIO

Alvares ele Azevedo, Casimiro de Abreu e os sermões de Mont’Alverne. Paralelamente, ia lendo os clássicos portuguezes e francezes. .V leitura desses livros des­ pertou-me o desejo de lêr outros a que elles se referiam. Antonio de Castilho, o auctor dos Ciúmes do Bardo, iniciava a publicação das suas traducções de Molière, e a leitura dessas ver­ sões levou-me a ler Molière no original para o cotejar com as traducções. Li assim a obra in­ teira do grande auctor-actor e em seguida co­ nheci a do eLafontaine, a de Boileau m h on b e a de Scarron. No meu espirito já se manifesta­ vam predilecções, e o gosto pela fórma apurada pronunciava-se. Percebi que precisava methodisar a leitura e estabeleci um plano. Comecei pelos poetas e prosadores hespanhóes e notei que os que mais funda impressão deixavam no meu espirito eram Cervantes, Bartrina, Castellar e Campoamor. Passei depois aos ita­ lianos e a minha predilecção manifestou-se por Dante e De Amicis. Dos inglezes foram Shakespeare, Dickens, Byron, Schelley, Carlota Brouté e Georges Elliot; dos allemães, Heine e Goethe; dos norte americanos, Longfellow e Edgard Poè. O auctor do Corvo encantou-me e assombrou-me. Lendo-o, senti o desejo irresis­ tível de escrever no genero das suas Historias extraordinarias. Fiz o meu primeiro conto nesse genero quando tinha 15 annos e ainda conservo j

GARCIA REDONDO

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esse trabalho mediocre, que nunca publiquei. Foi nessa idade que li com avidez e já prepa­ rado para sentir e julgar os então modernos escriptores francezes. Li Victor Hugo, Lamartine, os Dumas, pai e filho, Alfred de Musset, Ver­ laine, Baudelaire, Theophile Gautier, Guy de Maupassant e outros. Daudet apparecia. Li-o, mas não me impressionou como Hugo, Gautier e Maupassant. Hugo era para mim assombroso, extraordinario, e magnetisava-me pela grandeza das suas concepções e o imprevisto dos seus conceitos. Amava-o mais na prosa do que no verso. Theophile Gautier, o divino 7'heo, empolgava-me principalmente pelo estylo; Maupassant seduzia-me pela escola, que era nova, e pelo ta­ lento descriptivo, em que já se approximava de Gautier e de Hugo. Não contando os clássicos portuguezes que li, eis a minha bagagem literaria daquelle tempo. Só mais tarde, quando regressei ao Brasil em 1871, foi que conheci a obra literaria de Macedo, Alencar, Castro Alves, Varella e Machado de Assis, que ainda não era o mestre consagrado que hoje é. ■ O meu espirito, já então disciplinado, come­ çava a produzir methodicamente. Não quero fazer uma auto-biographia, mas posso agora, resumindo, dizer que os escriptores que mais influencia exerceram na minha for-

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O MOMENTO LITERARIO

mação literaria foram : Gonçalves Crespo, João Penha, Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz, Alen­ car, Edgard Poê, IJenri Heine, Theophile Gautier, Guy de Maupassant, Víctor Hugo, Bartrina, Byron, Schelley e De Amicis. Destes, os que tiveram uma influencia deci­ siva foram Crespo, Penha, Ramalho e Eça, Heine, Dickens, Gautier, Edgard Poè e Maupassant. De todos, o que mais influencia exerceu foi Gonçalves Crespo. Eis ahi porque o quiz para patrono da minha cadeira na Academia Brasileira. A confissão está feita. Das suas obras qual a que prefere?

R esposta— Caricias. — Especificando mais ainda; quaes dentre os seus balhos, as scenas ou capitulos, quaes os contos, quaes as poesias que prefere ?

R esposta—

Viagens pelo paizdaternura Caricias); o conto O Caso do abbade e os Voemas da juventude (da Choupana das Rosas). — Lembrando separadamente a prosa e a poesia con­ temporâneas parece-lhe (pie no momento actual, no s i l ,atravessamos um periodo estacionario, ha noves escolas (romance social, poesia de acedo, etc,), ou ha a luía entre antigas e modernas ? Nesle ultimo caso, quaes sdo ellas? Quaes os escriptores contemporáneos que as representam ? Qual a que julga destinada a pre­ dominar ?

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GARCIA REDONDO

R esposta—Não, o Brasil não atravessa actual­

mente um periodo estacionario. Também não ha luta entre as antigas e modernas escolas. Ha, sim, certa tendencia ainda vaga para a for­ mação de novas escolas que no romance se revela em Chanaan e na poesia nos versos de Francisca Julia e Emilio de Menezes. Penso, porém, que essa tendencia não passará jamais de uma aspiração. — Odesenvolvimento dos centros literarios dos Esta­ dos tenderá a crear literaturas a parte ?

R esposta—Não me parece. O velho Portugal

ainda sobre nós exerce tal influencia literaria que não conseguimos crear uma literatura essencialmente nossa, a despeito de quasi um século de emancipação política. A Capital Fe­ deral está para os Estados como Portugal para o Brasil. Delia é que ha de irradiar sempre a influencia literaria para os Estados, por mais autónomos que estes sejam, politicamente falando. Quando muito, poderemos vir a ter uma literatura do norte e outra do sul, algo distinctas, mas com eternos lacos de aflinidade. 7

i>

O jornalism o,especialmente no Brasil, é um factor bom ou máo para a arte literaria? —

R esposta— É um factor excelíente. É elle que

estimula o cultivo das letras, dando azo a que os novos surjam e exercitem as suas primei­ ras armas. Sem o jornal, que é um fanal, a

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arte estaria ás escuras. E geralmente pelo jor­ nal que o homem de letras começa; é ainda o jornal que lhe dá, maximé entre nós, as primei­ ras animações; é, finalmente, o jornal que con­ sagra o escriptor quando o neophyto se trans­ forma num triumphador. »

FROTA PESSOA

O Sr. Frota Pessoa escreve-me a seguinte carta, onde se ve o seu pouco desejo de entrar para a Academia: « Meu caro João do Rio.—Respondo aos tres últimos quesitos do seu inquérito. Por julgal-os de pouco interesse, deixo de attender aos que se referem á minha formação literaria e cá pre­ ferencia que dou aos meus trabalhos literarios.

—Lembrando separadamente a prosa e a poe­ sia contemporâneas, parece-lhe que no momento actual, no Brasil, atravessamos um periodo estacionario, ha novas escolas (romance social, poesia de o, etc.), ou ha a luta entre anti­ cçã a gas e modernas ? Neste ultimo caso, quaes são ellas? Quaes os escriptores contemporáneos que as represen­ tam ? Qual a que julga destinada a predominar ? O meu amigo ha de me permittir umas li­ nhas de estylo demagógico. Bem sei o horror n.

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O MOMENTO LITERARIO

que tem ás afíirmacões definitivas e violentas ; mas de outra forma nào lhe poderei dar inteiro o meu pensamento. Salvo melhor juizo, cuido que o Brasil con­ temporáneo não admitte o largo embate de ideas desinteressadas, no dominio da arte, porque todo elle está chafurdado em um vas­ tíssimo pantano. Todos os sonhos e ideaes ja­ zem sepultados nos espiritosdos mais fecundos esthetas. Não se nota um signo de renovação na atmosphera do sentimento. Pereceu nas almas a fé, e com a fé o enthusiasmo. Compare a estagnação deste decennio corrí a febre do decennio anterior. As causas ? E que as instituições sociaes que regulam a nossa existencia entraram em decom­ posição. As consciencias melhores andam afogadas nas miserias que as assoberbam. Isto é um nau­ fragio. Os caracteres oscillam : vacilla o concepto da moral dominante. Accentua-se um desequilibrio formidável entre as ambições e os processos de conquista. Nenhum pudor, nenhum respeito pelas antigas formas de virtude. Os governos prevaricam, blindados por urna inconsciencia invulnerável; os congres­ sos, impessoaes, realisando, como em tempo aígum,os typos collectivos de ajuntamentos illi-

FROTA

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eitos, curvam-se ao poder executivo com o incon­ dicionalismo de escravos ; os tribunaes se des­ vairam, attonitos, a formar jurisprudencias contradictorias sobre casos concretos impre­ vistos. E nenhuma preoccupação hypocrita de salvar apparencias. Depois, ainda ha uma decisiva aggravante : é a ignorancia popular, fomentada e cultivada pelos poderes públicos. Com a monarchia o mal não era tão grande. Num regimen em que a graça de Deus inspira governantes e governados, a ignorancia é quasi um bem. Mas em um regimen democrático, tão fatal é ao orga­ nismo social o analphabetismo das massas como ao organismo animal a privação de alimento. Quem disse essas coisas de um modo admirá­ vel foi o meu illustrado amigo Dr. Manuel Bomíim, em um discurso que pronunciou o anno passado perante o Sr. presidente da Repu­ blica e o Sr. Prefeito do Districto Federal. Não cito uns trechos característicos, para não alongar de mais este arrazoado; mas leia o meu amigo as paginas 10, 11 e 12 do opúsculo O progresso pela instrucção,que tal é o sob que se acha publicado esse monumental do­ cumento de critica social, obra ao mesmo tempo de'artista e de philosopho. Não! As escolas não se batem, meu caro. Nem ha escolas. Ha apenas poetas que vão tristemente produzindo livros tristes, pela lei do habito.

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Temos românticos, naturalistas, nephelibatas, lyricos, parnasianos, symbolistas, mas quasi tudo francellio, com aquellas magras excepções que, no dizer dos grammaticos, vêm confirmar a regra. O que não temos é naturalismo, par­ nasianismo, symbolismo, etc. E temos a A cademia B rasileira de L ettras— um mytho evocativo da Academia dos Selectos, ao qual o Sr. Seabra acaba de insuflar um pouco de realidade, fornecendo-lhe aposento, luz e creado, á custa da nação, para que, ante os seus pares attonitos, o Sr. Lucio de Mendonça reviva e perpetue a immortal querella com o Sr. G. Redondo sobre a nacionalidade de Gonçalves Crespo. Mas a própria Academia de Lettras, considere o meu douto amigo, nunca passou— tal a melancolia destes tempos—de uma socie­ dade funeraria, com o exclusivo escopo de prantear os defuntos immortaes e de receber novos immortaes candidatos á vida eterna. Nella se entra pura e simplesmente para adquirir di­ reito a uma morte carpida entre phrases retum­ bantes e descompassados encomios. Nunca, jamais, nenhum immortal, alli penetrando, fez, no seu caracter de immortal, outra coisa que não partir para a bemavanturança. E como o meu arguto amigo, com a sua incomparável perspicácia, deve ter ponderado, de si para si, isto é macabro. E nestascondições, dadoeste meio, como haver O

Fl'.OTA PESSOA

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activiclade, emulação, justas renhidas entre estheticas rivaes; como—escolas modernas lu­ tando pela supremacia; como—escriptores re­ presentativos; como—predominio de cânones literarios?

— O desenvolvimento dos centros literários dos Estados tenderá a crear literaturas á parte? A literatura dos Estados é um reflexo da literatura desta capital. A’s fulgurações e aos desfallecimentos desta correspondem fogachos e deliquios naquella. As formas predilectas da arte literaria, aqui, são immediatamente acceitas pelos provincianos, da mesma forma que nós acceitamos e assimilamos, sem coisa al­ guma innovar, tudo quanto nos vem do estran­ geiro. Mas essas agremiações não deixam de ser in­ teressantes a até certo ponto se justificam. No meio provinciano fallece de todo o estimulo a qualquer producção de arte. Os jornaes que ahi se publicam vivem açodados em salvar a Patria : uns, defendendo os actos, de maravi­ lhosa honestitade, do governador ou presidente ; outros, dia a dia apontando e verberando as incontáveis infamias e tranquibernias que esse mesmo cidadão pratica. Não ha como se celebrisarum genio, fulgindo nessas columnas febris, consagradas a fins mais

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altos que acolher lucubrações literarias. Depois, o poeta que é amanuense do governo não tem guarida no jornal da opposição e o contista que frequenta os salões e namora a filha do chefe po­ lítico em opposição nunca achara agasalho na folha oííicial. A publicação de livros é um martyrio : o preço da edição—exorbitante, e ninguem quer ou sabe lel-os, quanto mais compral-os. E assim que os rapazes que se preoccupam em fazer versos, phantasiase contos—que é quasi a que se reduz essa literatura provinciana—só encontram um certo desafogo nos agrupamen­ tos neutraes. Reunem-se, lêem as suas produccões, applaudem e são applaudidos; ás vezes, fundam uma pequena revista... E tudo obrigado a presidente, thesoureiro e secretarios. Esses centros trazem uma vantagem : desenvolvem umas vocações mais bem dotadas e as preparam para vôos mais largos. E trazem um inconveniente : o orgulho de alguns plumitivos exacerba-se e torna-se feroz. A’ forca de crear em torno de si uma certa * legenda de talento, um ou outro desses agre­ miados cresce para dentro de si de uma fôrma alarmante. E então não ha expressões encomiás­ ticas que, em breve, lhe não pareça sem sabor. Mas, em verdade, desses ha raros. A maioria é modesta e pouco a pouco succumbe asphyxiada. Talentos brilhantes conheci que para sempre /

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FROTA PESSOA

desapparaceram. O meio provinciano é uma campanula de bronze. Mas, apezar de tudo, o mais humilde desses centros tem uma decisiva superioridade sobre a A cademia B rasileira de L ettras, associação aqui fundada em 1896 e que o meu amigo, que é lido e curioso, deve conhecer pelos fúnebres arruidos que produz de onde em onde. Supe­ rioridade : porque são sinceros e liberaes, porque são determinados por um justo sentimento de defesa e uma ancia activa de progresso, e ainda porque são ingénuos, compostos, na sua maioria, de rapazelhos que têm uma visão estreita, uma comprehensão provinciana e uma cultura imper­ feita. Até aquielles pouco têm influído, ou quasi nada, de um modo directo, na literatura, quanto mais ao ponto de crear literaturas á parte. Mas acaso a Academia, nos seus nove annos de exis­ tência (existência é uma metaphora), acaso a Academia, viveiro de aguias, nos seus nove annos de existência, tem revelado um pendor, mesmo ligeiro, para a formação de uma lite­ ratura nacional dos escombros das tentativas anteriores ? Não! Nove annos de inércia ante o aguilhão dos sarcasmos enein um movimento para qual­ quer obra util e fecunda. Ou a Academia matou esses quarenta immortaes, ou esses quarenta immortaes mataram a Academia. Mas, além das causas geraes indicadas no /

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l\° capitulo e das que aqui vão compendiadas, a literatura dos Estados soííre outros males que a suffocam. Nessas deploráveis circ*mscripções geographicas não ha governos, lia feitores quasi analphabetos, que exercem o seu dominio com furia e sanha. Uma rêde de extorsões, de violencias, de peculatos descarados, de con­ cussões voracissimas, envolve todas as activi­ dades,7 colhe os fructos de todos os esforços individuaes, no proveito dos usofructuarios pri­ vilegiados. Justamente os intellectuaes são os que menos se sujeitam ao vexatorio régimen de descabel­ lada oppressão que alii se exerce sobre todas as autonomias; e, ou ficam privados de elementos vitaes para exercer a sua funcção, ou fogem ao meio irrespirável. Por aqui já se vê : de urna parte, a melancolia que se derrama por essas regiões é incompatível com o subjectivismo das creações de arte; de outra, os cultores da lite­ ratura se retrahem, ou buscam paragens onde o sentimento se possa expandir com urna certa liberdade. E não é tudo : a instrucção popular é, pouco mais ou menos, o que é na Russia. Setenta e cinco ou oitenta por cento dos individuos são analphabetos. Os cargos do magisterio são pri­ vativos dos filhotes políticos dos pequenos chefes locaes. Distribuem-se os logares de professores como os de escripturarios de cartorio. Um proó

FROTA PESSOA

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fessor adverso aos governantes é um inimigo publico. Querem-se cabos de eleição e não mes­ tres de ensino. Nem se faz questão de que haja uma instrucção publica, sinão de que exista um quadro de empregados, para premio dos apaniguados. Esta é a situação geral, si, no emtanto, exceptuarmos tres ou quatro Estados, que escapam, aqui e alli, a umas ou outras dessas arguições. Desconfio bem que, não obstante a numerosa dialéctica que venho empregando, não respondi ao esfuracante quesito sobre os centros litera­ rios. Porque o que o meu delicioso amigo quer de mim é que lhe prognostique sí o desenvol­ vimento de taes centros tenderá a crear litera­ turas áparte... Os séculos são, por sua natureza, longos, e o meu dom divinatório curto. Eu sou um oráculo tímido e prudente. Zélo a minha reputação : que dirão os meus tetranetos remo­ tos, si no século XXX me encontrarem em falta, tendo feito erróneas previsões ? Comtudo, posso arriscar-me ao seguinte : com o Brasil de hoje, não creio; com uma nova Patria, expur­ gada, regenerada e redimida, é possível. Porque o meu caro inquisidor bem sabe que tudo é possível. E possível que o Sr. padre Severiano venha a ser canonisado. E possível que o mo­ desto rabiscador destas singelas prophecias e sen­ tenças ainda seja um dos luminares da Academia de Lettras.

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O MOMENTO LITERARIO

— 0 jornalismo, especialmente no Brasil, c umfactor bom ,ou nido, para a JE, meu cloce amigo, quanto ao jornalismo... Difficilem rempostulasti... Não faça caso do latim e attenda. Tenho para mim que, em geral, as instituições, as colecti­ vidades, têm urna moral inferior á dos indivi; dúos que as compõem ou representam. Con­ sidere o Estado, que é a instituição typo. Conhece acaso entidade mais despótica, mais absorvente, mais cruel e mais nociva ? Elle paralysa a iniciativa pessoal; concentra em si, em detrimento da liberdade individual, uma formi­ dável somma de poderes discrecionarios; esti­ mula, com a arbitraria legislação que institue e com o apparelho compressor de que se cerca, os crimes e as infraccões; sacrifica ao bem estar de um pequeno grupo de seres improductivos todo o enorme esforço das populações labo­ riosas. Considere as subdivisões dessa complicada machina de oppressão : os congressos, os tribunaes, os jurys, os exercitos... Todos os males que desabam sobre as nações vêm dos actos soberanos dessas e outras corporações. Consi­ dere ainda as instituições que se fundam pelo livre concurso dos individuos: os clubs, os syndicatos, os trusts, as associações de qualquer genero, inclusive as de intenções pias, inclu­ sive a A cademia B rasileira de L ettras, que O

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FKOTA PESSOA

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nunca abrigou no seu venerando e infecundo seio intenção alguma. E verá que se reflectem, dessas pessoas collectivas sobre as singulares, mais maleficios do que benefícios. Mesmo as de intenções pias, disse : porque ellas nada mais representam do que a hypocrisia com que as classes privilegiadas pretendem mascarar o seu monstruoso egoismo e, por­ tanto, concorrem para manter no mundo as se­ culares injustiças que o envergonham. Mesmo a Academia de Lettras, disse tam­ bém : porque é uma mentira mumificada, uma aristocracia decadente e vadia, para embasba­ car papalvos e formarsnobs. E toda mentira deve ser combatida e repudiada, porque toda mentira é uma adulteração fraudulenta da Natureza e um refalsamento indigno do espirito humano. E essas instituições não evoluem das suas formas essenciaes. Os congressos têm o mesmo cordato servi­ lismo que fazia o Senado Romano dar o titulo de cônsul ao cavallo de Caligula. Os jurys são incompetentes ou venaes : ou absolvem por cupidez, ou condemnam por preconceito e igno­ rancia. Os exercitos professam os mesmos principios de gloria assassina e sanguinaria, e trazem aos povos os mesmos flagellos que as hordas primitivas de mercenarios, apenas sem as francas attitudes e os ingenuos gestos de brutal ferocidade. Elles massacram, como

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outr’ora, os individuos validos, e sacrificam, dess’arte, os milhões de frageis seres que do seu amparo viviam; e, como conjuração aos cla­ mores e ás maldições das victimas innocentes, fabricam-se códigos de humanitarismo e créa-se toda unía repulsiva moral patriótica, que galvanisa o coracao da bruta massa de carrascos inconscientes que compõem as suas fileiras. Ora, o jornalismo é hoje uma instituição collectiva, anonyma e quasi irresponsável, por quasi omnipotente; participa, pois, dos vicios das collectividades. Estes se attenuam quando o jornal é a tribuna activa, de onde um deter­ minado espirito, que traz convicções e idéas próprias, se dirige ás massas para esclarécel­ as, conduzil-as e educal-as. E o caso de Ferreira de Araujo e de José do Patrocinio. Mas, na sua feição mais commum, o jornal moderno é uma instituição que decahe. No emtanto, eu não pretendo, nem desejo, aquí, vociferar contra o jornal, onde nos fize­ mos, que nos deu os primeiros ardores para o combate da vida, os primeiros enthusiasmos e illu sões de renome e as ultimas emoções, realmente sinceras, da publicidade. Sou grato ao jornal, amo o jornal, com esse amor irreflectido dos verdadeiros amantes. E nem por isso— não se sobresalte o meu preclaro amigo—nem por isso constatarei nestas linhas simples que O

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elle é um vehículo de ideas, ou uma alavanca do progresso. O jornal é o que não póde deixar de ser : funcção do progresso e delle servidor. —Mas particularmente para a arte literaria, argúe-me o seu quesito derradeiro, é um factor bom, ou máo? Com as inevitáveis restriccões que decorrem de quanto fica dito, cuido que o jornalismo presta á arte literaria—e isto é in­ tuitivo—todos os serviços de propaganda e diffusão rapida, que ella requer para se desen­ volver. E sobretudo em um meio como o nosso, em que a industria editora é tão arisca e mofina, elle é um estimulante eííicaz á actividade intellectual dos neophytos de valor. Estas são as suas innegaveis utilidades, no que se refere á literatura. Entre as suas influencias nocivas póde esta sei1 de prompto lembrada : facilita uma literatura de fancaria, que embota e corrompe o gostoartistico dos leitores e determina a decadencia dos escriptores que a executam (e temos exem­ plos contemporâneos memoráveis), quer insti­ gados pela necessidade de viver, quer induzidos por uma ancia vã de reclamos e gloriólas. Terei correspondido aos intuitos do magni­ fico espirito que me honrou com a sua consulta? Estou que sim, tanto quanto isto é possível a um homem que se acostumou a dizer todas as extra­ vagancias que pensa—um péssimo costume... » '

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OSORIO DUQUE ESTRADA

O Sr. Osorio Duque Estrada é professor, jor­ nalista, poeta, re, de vez em quando teu con critico de arte. Ha tempos, em campanha de eleição académica, foi o nome do Sr. Osorio Duque Estrada muito falado. Alto, louro, forte, no auge das ambições, o Sr. Osorio escreve-me urna carta rapida e cortante. Antes, porém, quando o mesmo escriptor disputava uma cadeira na Academia, manda­ ram-me graciosamente esta nota para um di­ ccionario, que não pretendo fazer : « Osorio Duque Estrada, nascido em Vassou­ ras, Estado do Rio (1870), bacharel em letras pelo ex-collegio. Pedro II; foi secretario de legação e encarregado de negocios no Paraguay (1891 a 1892); foi inspector geral do ensino no Estado do Rio, por concurso, tendo tambem exercido alli os cargos de membro do Conselho Superior da Instrucção e de lente de francez do Gymnasio Fluminense.

OSOUIO DUQUE ESTUADA

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É actualmente lente de historia geral e do Brasil do Gymnasio Nacional. Tem publicado : Alveolos(poesias) 188 (poemeto) 1894, O Phonograindiscreto (co media), A aristocracia do espirito, Cartas do Paraguay, Aquestão do , portugueza, Questões de portuguez, Flora de maio (poesias) 1902. Collaborou em alguns jornaes de S. Paulo, em quasi todos os desta cidade, e foi fundador e redactor-chele do Echo de Cataguazes (Minas). E ainda auctor de tres revistas de anno, duas das quaes já foram representadas, tendo con­ cluido últimamente tres libretos de operas, sendo um escripto em francez e outro em italiano. » Tão preciosa nota não podia deixar de ser publicada. Eis a carta : « Meu caro.—Ahi vai em quatro palavras o que entendi responder ao questionário que me dirigiste. Quatro palavras apenas, para não me comprometter muito : é a melhor maneira de respon­ der ás enquétes literarias, principalmente quando se tem sobre os hombros a responsabilidade de urna candidatura á Academia de Lettras. Ahi tens, com alguma cautela, cinco respos­ tas que pouco adiantarão á tua curiosidade : Ia. As tres maiores fontes de poesia, segundo Hugo: —a Biblia, Homero e Shakespeare; entre /

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O MOMENTO LITERARIO

os modernos : Gcetlie e Hugo, na poesia; Flaubert e Zola, os Goncourt e Eça de Queiroz, no romance. 2a. AFlora de Maio;desta Supremas e Em ,P seio além do Livro a Em prosa : O Paraguay e a Questão do Di­ vorcio. 3a. Sim : atravessamos um periodo estaciona­ rio. Os representantes das diversas escolas sao ainda os mesmos de 20 annos atrás, mas emmudeceram quasí por completo. 4a. Não me parece; a inspiração literaria, para consumo de todo o Brasil, continúa a ser importada de França, e chega muito deterio­ rada pelos imitadores sem talento, principal­ mente de Yerlaine. 5a. Actualmente é um pessimo factor. Dominou-o o espirito pratico da época; o jornalista está quasi substituido pelo repórter; as reda­ cções, de focos intellectuaes, converteram-se em casas de negocio; as columnas da imprensa es­ tão quasi trancadas ás producções intellectuaes ; os talentos reaes, que ainda collaboram nella, já reflectem o espirito pratico dessas emprezas mercantis : a chronica política, o commentario sobre os assumptos da vida burgueza e conser­ vadora, a chalaça pérfida, o verso mordaz e a invectiva sórdida ou desabalada substituiram a obra forte da intellectualidade. Ninguém produz, porque já não ha quem

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leia. O futuro se me afigura ainda peior : a desorganisação e a immoralidade no ensino vão preparando novas e mais temerosas ousadias do bacharelismo analphabeto. Atravessamos uma época de crise intellectual bastante aguda. Um factor politico a justifica, pela asserção de Guyau : la democratic lue Vart. E logico e irrecusável. Nesse particular, a Re­ publica foi uma calamidade para o Brasil.

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FABIO LUZ

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O Sr. Fabio Luz foi um dos primeiros escriptores com tendencias sociaes e humanitarias que consultei. O Sr. Fabio respondeu-me com esta breve carta : « l.° Para as minhas tendencias literarias (muito incompleta ainda a minha formação) con­ tribuiram diversos auctores, notadamente Zola, nos seus últimos livros, e Kropotkine accen­ tuando sentimentos desde muito carinhosamente cultivados. Mais que todos, porém, contribuiu a alma ingenua e boa do povo, em cujo con­ tacto vivo, cujos costumes e indole procuro es­ tudar, cujas dores physicas e moraes sou obri­ gado a observar quotidianamente, por dever profissional, sendo, como sou, medico. Por amor deste ultimo mestre vieram-me a revolta con­ tinua contra a organisação social de hoje e a aspiração por um futuro melhor e mais equi­ tativo. 2.° Nenhuma preferencia tenho por qualquer dos meus trabalhos, julgando-os sempre incom-

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FABIO LUZ

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píelos e deficientes, mal os publico, constan­ temente torturado pelo desejo de produzir mellioi, numa sede insaciável de perfeição nunca attingida, maximé quando os comparo com as obras d’arte dos outros. 3.° Actualmente o Brasil literário atravessa um periodo de estagnação e as lutas se travam entre os con sagrad os, que procuram amesquinliai e depreciar os trabalhos dos/meos, no justo receio de que lhes venham fazer sombra, e os novos, que aspiram ser velhos, medalhões, con­ sagrados, demolindo reputações bem ou mal adquiridas. Acredito, entretanto, que um vigoroso movi­ mento, sério e consciente, se vai fazendo para dar á arte um cunho social e humano, que ha de predominar, abandonados os requintes de perfeição manual e mecanica, tão em voga, bem caracterisados pela modelagem perfeita das es­ tatuas das nossas praças, sem um sopro de in­ spiração artística na concepção, nem como symbolos, nem como verdade, pela falta absoluta de sinceridade, incapazes de provocar sensações foi tes e duradouras e sentimentos elevados. Ai te de filagrana—bella para ver e inteiramente inútil; boa arrumação de palavras, paizagens sem figuras, figuras sem a illuminação do olhar. 4. ° Julgo que não. 5. ° O jornalismo estraga e esterilisa os escriptores e artistas que fazem delle profissão. Para

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a literatura é sempre prejudicial, com suas apotlieoses aos amigos e conluiados, enchendoos de vento e vaidade, e o silencio matador para os desaíFectos ou indiferentes. Dos conciliábu­ los das redacções e dos chopps intimos saheni sempre as coteries e as consagrações das me­ diocridades, em torno das quaes chocalham os guisos da fama (!), desviada a attenção publica do verdadeiro mérito, illudida pelas fanfarras, entontecida pelo fumo do incenso queimado em thuribulos de folha de Flandres. » O auctor do Ideologo, aliás uma alma delicada e simples, nao comprehende que já nao estamos no tempo dos genios ignorados...

JOAO LUSO

Mandam-me entrar para uma pequena sala ciieia de pequenas estantes, de guericlons, de photographias e de jarras coni rosas. Ha junto á mesa urna vasta poltrona; encostada á parede, sob um retrato de Eça de Queiroz, um largo divan coberto de panno da India. Sento-me no divan e olho em de redor. A’ esquerda, uma porta quasi apagada pelo repos­ teiro; á direita, outra porta dando para urna pequena area donde se divisa a belleza da paizagem dâ montanha. E noite. O candieiro tem urna luz tenue e carinhosa, dessas luzes que deixam sombras agradaveis pelos cantos. La fóra, a lua espalha pelo monte a poeira de prata do luar alvíssimo. Tenho a impressão de estar em scena, num scenario arranjado cuidadosamente para o final triste das pecas passionaes francezas. í)evem ter logar alli as despedidas soluçantes, os últimos adeuses dos olhos pisados e dos peitos arfantes, e eu vejo nitidamente o dono da casa 12.

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de pyjama de velludo despedindo os velhos amores, com o gesto calmo dos super-homens : —Adeus, cruel!— Boa noite, minha querida senhora... Neste momento, abriu-se a porta e appareceu o conhecido chronista, alto, corcovado, com o pescoço muito cumprido e todo elle envolto num pyjama lilaz. — Ia trabalhar? — Ia; resolvera até não sahir á noite. — Ha trabalhar e trabalhar. — Era trabalhar no bom sentido. Sabe bem que eu deixo deíinitivamente essas criançadas da bohemia de jornal. O meu ideal é a paz do lar. Sinto que depois trabalharei muito mais. Ah! meu amigo, o que nos perturba, a nós outros, é a inconstância da vida sentimental! Gravemente, João Luso sentou-se na poltrona. —Tenho então que responder a um inquérito ? —E mais facil que uma carta de amor. — Conforme... Pegou da carta que eu lhe enviara. —Quaes os auctores que mais influiram na minha formação literaria ? Zola, Flaubert, Maupassant, Eça de Queiroz e muitos outros. Tomei do lapis, fui annotando os nomes, posto que tivesse a certeza de que o escriptor para a sua formação tivesse antes sido Garret, Julio Diniz e Castello Branco. Mas era uma certeza pessoal. Continuei.

JOÃO LUSO

—Qual cios seus livros prefere ? —A escolha não é difíicil. Tenho apenas dois livros publicados; prefiro o segundo, Prosa, porque me parece um pouco mais bem escripto. Mas dos trabalhos nelle contidos não prefiro nenhum porque todos estão muito longe cbaquillo que eu quizera escrever. Tomei do lapis, fui annotando essas palavras, posto que tivesse a opinião de que o primeiro livro desse admiravel temperamento de escriptor era, pela sua espontaneidade, muito melhor que o segundo, do qual o mesmo temperamento fazia um alto juizo. Mas era uma opinião pes­ soal. Volvi-me ao inquérito, indagando as suas opiniões sobre escolas literárias. — Romance social, vejo apenas o de Curvello de Mendonça, diz João Luso esquecendo Fabio Luz e o C h a n a n de Graça Aranha, que o sr. Felix Pacheco tanto admira; poesia de acção, não creio que haja, felizmente. Depois, o periodo das escolas passou com as revistas de titulo grego. Hoje, cada um faz o que póde, livre­ mente, por si — o que me parece muito mellioi. —Não ha lutas ? —A literatura actual é essencialmente pacifica. —E talvez passiva... João Luso sorriu vagamente, aconchegando a gola do pyjama ao seu pescoço côr de araçá. Irra­ diava sympathia. As suas mãos admiráveis de principe do Renascimento, mãos magras c O

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esguias, mãos que Yan Dick pintaria nos palacios de Hespanha, eram como uma caricia por onde pousavam. —E a literatura dos Estados? —A meu ver só Curityba deu-se ares até agora de centro literário independente e forte. Mas esses brilhantes rapazes fizeram-se isoteristas, symbolistas, kabalistas, impossibilistas, e—horresco referens !— um bello dia surpreh nome do mais vigoroso e mais enthusiasta, o maioral da banda, no cabeçalho de um jornal maconico. Ai dos filhos da Viuva ! * Ai dos rapazes de Curytiba! —A i! ai! fiz para acompanhal-o, percebendo que João esquecera a Mina do Pará, a Padaria do Cear, e outros estabele á cimentos literários á parte do vasto littoral brasileo. —Quanto á sua ultima pergunta, a minha res­ posta é exquisita. —Deveras ? —Acho que o jornalismo não favorece no Brasil a literatura; mas é igualmente verdade que a literatura não favorece o jornalismo. —E na sua essencia a maior verdade que eu tenho ouvido. —Porque praticamente o jornalismo serve aos literatos. —Exactamente. —Pois ainda outro dia ouvi de um director de jornal o seguinte : si eu dispensar todos o

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meus collaboradores, a sabida da minha folha não diminuirá um exemplar. Euguli em secco em nome da classe, e calei-me. Parece que é assim mesmo! —Mas, diga-me : tem muita coisa em preparo? — Foi-se o tempo do livro único; eu imagino por consequência, muita coisa mas para quem vive preso ao jornal—e só têm grande ração os que assim vivem—as obras dependem dos jornaes. Não se dá uma pennada sem a certeza de ver a coisa publicada no dia seguinte. Eu tenho um romance que ainda não passou do primeiro capitulo. Ficará prompto sí um jornal tiver a idéa de encommendar-me um romance. D’ahi o achar que para annunciar obras minhas falta aqui o collaborador eventual, o que collecciona os trabalhos— o jornal... João Luso ergueu-se, diminuiu a luz do candieiro. Lá fora a lua espalhava pelo monte a poeira de prata do luar alvissimo. Em de redor tudo era como sí estivessemos em scena, no quarto acto de uma peça em que entrasse a Rejane com os diálogos feitos pelo Donnay. Deviam ter logar ali as despedidas soluçantes, e eu ouvia nitidamente, na allucinação calma dos imagina­ tivos, uma voz arfante murmurar—adeus, cruel!.. —Pois muito boa noite. —Até outra vez! concluiu o escriptor. E, cui­ dadosamente, deu volta á chave por dentro. Ia trabalhar.

MARIO PEDERNEIRAS

Do Sr. Mario Pederneiras, um dos mais admi­ ráveis poetas da geração nova, recebo a seguinte carta : « Meu caro João do Rio.— São profundos e consideráveis os quesitos do teu interessante interrogatorio sobre a nossa actualida lite­ raria. Demandam Erudição, e tempo não me sobra para o trabalho paciente de aprendizagem e rebuscamento pelas empoeiradas e somnolentas prateleiras das Bibliothecas e dos Institutos. Demais, eu detesto o Alfarrábio, que me traz ao espirito a tristeza das exhumações, quando não representa a illusão de uma inutilidade, porque, se têm mérito excellente a Idéa e o Principio pontificados pela Intelligencia de ha séculos, vencem facilmente a profunda inexora­ bilidade do Tempo e dos Esquecimentos, im­ pondo-se á feição pratica dos nossos dias, em reedições commodas e cuidadas, pois não me parece que aos progressos typographicos de

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agora repugne a divulgação impressa de uma velha ídéa sã ou de um louvável Principio se­ cular. Ora, para que na minha resposta houvesse a substancia e o esclarecimento que procuras, era preciso que eu me arrumasse por dias inteiros no silencio pacato de um gabinete de estudos, na companhia detestável e perigosa de liv ros velhos, e me deixasse encharcar pelo alto Saber dos Tratados para a analyse das Causas que concorreram para a minha formação literaria, para o desenvolvimento dos centros literarios dos Estados e para a consideração do jornalismo, principalmente no Brasil, como um factor bom ou nido para a arte literaria. Tudo isto é considerável, João\ precisa Methodo e eu sou, por desgraça minha, dos de temperamento nervoso e dispersivo, de tal modo, que odeio os gramophones pelo horror á exactidão mecánica das reproducções e detesto os chronometros Gondolo pelo terror á hora certa. Já vês que me embaraçam diííiculdades insu­ peráveis para attender á gentileza das tuas interrogações, e entre aquellas não são as me­ nores o Methodo e o Alfarrábio, sem os quaes, reconheço, nada de mérito se póde fazer em questões de alta literatura. Entretanto, não me quero furtar ao teu hon­ roso convite, que me veiu surprehender nesta

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minha solitaria vida de hoje, tão preciosamente repartida entre as cançativas attribulações do ganha-pão de todo o dia e o carinhoso consolo da Familia. E poupo assim á Posteridade a trabalheira dos rebuscamentos históricos sobre a minha forma­ ção literaria e sobre os méritos que me possam proporcionar a homenagem de uma herma na quietação bucólica das alamedas do Passeio. Tem paciencia e ouve-me. Pouco antes de 1890 eu ainda chorava amores trahidos e desventuras sentimentaes, com amesma sinceridade com que choraria hoje, sí me roubassem a carteira com todo o ordenado de um mez. Era um lyrico, com todos os , e, sí bem me lembro, usava também a sombria sobrecasaca da Escola e o molle chapéo conquis­ tador. Era pallido e tinha insomnias. O meu lyrismo tinha qualquer cousa da es­ pontanea sinceridade de Casimiro de Abreu e do bucolismo agradavel de Gonzaga. Foi na imitação destas duas boas Almas simples que eu moldei as minhas primeiras producções li­ terarias, accrescentando-lhes, por conta propria, um scepticismo reles de philosophia collegial, que condizia admiravelmente com a minha pallidez, com o meu chapéo conquistador e com as minhas insomnias. Por esse tempo o tyrismo nacional agoni-

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sava envergonhado, deante dos parnasianos, que traziam a novidade da Forma impeccaval de Alberto de Oliveira, o Verso meridional e vi­ goroso de Olavo Bilac e os sonetos magistraes do MesLre do soneto brasileiro—Luiz Delfino. A nova Escola, porém, nenhuma influencia exerceu sobre o meu espirito e eu continuei, por algum tempo ainda, a chorar os meus amores trahidos e as mesmas desventuras sentimentacs, embrulhado na mesmissima sobreca­ saca sombría, á sombra do mesmíssimo chapéo conquistador e inolle. Foi em 1890 que eu comecei a minha verda­ deira formação literaria na companhia de dous lindos Espíritos de Artistas—Gonzaga Duque e Lima Campos. Ei a a época da bohemia rebelde dos « novos », com Lodo uin longo cortejo de revistas epheíneras e um disperdicio extraordinario de talento e de energia. A nova Escola seduzira-me encantadoramente com a riqueza pomposa das suas theorias de Renascimento, a delicada transcendencia da sua Phantasia e a alta novidade emocionante do seu Rythmo e da sua Forma. Comecei então a considerar-me simplesmente reles e atrazado. Que diabo! aos 21 annos, com todo um curso completo de Humanidades, Philosophia inclu­ sive, era ridiculo viver atarrachado áquelle 13

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sentimentalismo choramingas de poeta lyrico e desconsolado, pois não era? Foi quando resolvi vender a minha pobre sobrecasaca, sombriamente longa, e o meu que­ rido chapeo, sentimentalmente molle, a um estudante de pharmacia, nomeado amanuense por concurso. Desde logo detestei os poetas lyricos, inclu­ sive Lamartine, e atirei-ine desesperadoramente á leitura dos ardorosos symbolistas (rancezes. Annos depois publiquei a minha primeira píaquette ia on g A , que mereceu a honra de urnas tantas descomposturas, solemnemente passadas pela venerável critica indígena. Critico houve que a qualificou aterradoramente de dernier cri do nephelibatisrno. Enguli calado o insulto, pelo alto respeito que dedico ao venerável sacrifi­ cio intellectual da critica. Entretanto, João, era um livro honesto, sen­ tidamente trabalhado, sem pose e sem intenções preconcebidas de armar ao eííeito. A critica, porém, condemnou soberanamente a minha pobre plaqueLte e... esgotou-se a pri­ meira edição. Depois, a delicada comprehensão artística de Lima Campos e a delicada espiritualidade de Gonzaga Duque abriram á minha modesta intelligencia horizontes mais largos e mais claros e en me fui educando aos poucos e aos poucos conhecendo os mestres da Arte escripta. O

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Foi então que eu comecei a amar perdida­ mente a obra monumental de Flaubert, a comprehender o fino estylo delicado dos Goncourts e a ler Maupassant e Gauthier. Cuidei carinhosamente da Phrase e da Fórma e procurei para o meu Verso toda uma feição puramente pessoal. Publiquei então as minhas Rondas Nocturnas. A Critica teve elogios para o meu livro. Apenas um critico de S. Paulo conseguiu en­ contrar um verso errado no meu trabalho. Mentalmente mandei-o á fava. Eu, Lima Campos e Gonzaga Duque forma­ vamos uma trindade solidamente unida pela mais ampla e a mais sincera das aíTeições. Gonzaga Duque, pela superioridade do seu Espirito, pela sua erudição, pelo seu alto cul­ tivo intellectual, reunira, em torno da sua doc< íigura sentimental, todos os rapazes de mérito da época. Era o amado de todos. Tinham-no como chefe dos « novos » os que o não comprehendiam, os que precisavam de alguém para responsabilisar pelos commettimentos ousados daquelle grupo de rebeldes. Asneiras... Gonzaga Duque era então o que ainda é hoje, — o mais delicado Espirito de Artista da nossa época, e nada mais. Lima Campos era também o que continua a

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ser h oje,— o Artista excellente da prosa larga e do estylo vigoroso. Foram estes dous Espiritos delicados, estas duas Almas simples, as maiores influencias da minha formação literaria e da minha folgada vida bohemia, que começou alli, naquella brasserie da rua da Assembléa, onde o velho e paciente Knopp, o mais inflexível e manso dos allemães que tenho conhecido, nos servia, a par do topázio excellente dos seus chopps e do per­ fume appetitoso dos seus « sandwichs » de fígado de ganso, o cabedal precioso para as nossas futuras dyspepsias. Amo apaixonadamente esse delicioso livro de Arte, que é a « Mocidade Morta », e esse magni­ fico trecho sentimental, encaixado na delica­ deza de um conto, sob o lindo titulo de « Bemditos Olhos », que Gonzaga Duque publi­ cou, vai para dez annos, num jornal carioca. De Lima Campos, venero todo o « Confessor Supremo », especialisando essa admiravel pagina lescriptiva, que é a « Velha Mangueira », e esse lindo trecho simples do « Pharoleiro ». Quaes os poetas que influiram na minha for­ mação literaria? Sei lá... Só te posso dizer que tanto adoro a plastica antiga de José Maria Ileredia e Lecomte, como a simplicidade delicada de Yerlaine e o romantismo de Gauthier. E dos nossos? Tenho um devotado culto pelos sonetos ma-

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gistraes de Luiz Delfino, o das « Naos » e da « Magdalena aos pés da Cruz », e tanto admiro o Verso quente e meridional de Olavo Bilac, como a impressão cathedralesca d^ Emilio de Menezes. E por que não dizer também que me delicio com a arte estranha de Cruz e Souza, do « Satan », do « Acrobata da Dor » e de « Meu Filho », e que nutro uma delicada affeição pela meiga simplicidade consoladora de Cesarío Verde e Macedo Papança ? Respondo agora ao teu segundo quesito. Para desespero dos amadores da literatura de peso, em brochuras de kilo, todo o meu trabalho literário, até hoje apparecido, está enfeixado em duas plaquettes esgalgas, excellentemente impressas : Agonia e Rondas No­ cturnas. A primeira, meu livro de estréa, soífreu, coitadinha, todos os máos tratos da veneranda Critica indigena; disseram-lhe nomes feios, cha­ maram-na de producto postiço do preconceito escolar, e até, oã,chegaram a arrumar-lhe J em cima o peso vigoroso de insultos em francez. Um horror... Lembro-me ainda de que o egregio Sr. Antonio Salles, no seu bellissimo estylo pompadour, deu-lhe p’ra baixo de rijo, em meio palmo de excellente prosa grammatical, pelas columnas de honra de um diário de ephemera duração. Desesperei, oã, porque contava bastante J

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com a auctorisada opinião de S. Ex. para a minha consagração de poeta novo. Infelicidades da vida, que queres? Outros criticos veneráveis perderam-se num estranho labyrintho de considerações e rebuscamentos, e lá fui eu levado, aos trambolhões, das azas de ícaro aos quadros de Puvis de Chavannes, por todo o longo espaço de um substancioso rodapé do Sr. Araripe Junior, onde se excla­ mava a respeito do symbolismo : « üe onde pro­ vem o Universo, perguntava o Rishi ao fíig Veda? » Descobri-me respeitoso e embasbaquei... Foi este o mérito exterior do meu primeiro trabalho. Poz tonta a indigesta Critica nacional e os que não puderam apresentar méritos de uma erudição medonhamente cacete, insulta­ ram-me, chamando-me até de « mystificador ». Entretanto, oã,eu havia feito conve J mente um livro honesto e sincero; era assim a minha comprehensão literaria na epoca e foi assim que a executei. A Agonia, representava valorosamente a in­ iciação do meu sentimento de poeta, naquelle agitado periodo de transição, e trazia na expres­ são do meu verso novo e trabalhado um grande feitio de apuramento e de remodelação de toda a minh’alma de sentimental. E eu sentia gloriosamente que a minha doce e amada Poesia perdera aquelle geito capado-

MAUÍO

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cio de modinhas em noitadas d’esbornia ao choro melancólico dos violões gemedores. Bastava isto para que eu dedicasse á minha modesta p la q u etum carinho especial e esta grande affeição que ainda hoje lhe dedico. Ha alli dous capítulos que eu amo sincera­ mente — Clamor e Hora viuva, e versos que ainda hoje me encantam, como este, de uma suave observação phantasista : Bello tempo o da mésse, Do sol que a terra e que as espigas doira... Para quem passa nos trigaes parece Que a terra é toda loira. E outros e muitos outros. Para compensar a maldade da critica dos velhos medalhões da minha terra, eu tive o largo e lisongeíro applauso da espiritualidade moça da minha época, magníficamente representada por Paulo Barreto, Gonzaga Duque, Félix Pa­ checo, Félix Bocayuva, João Luso e tantos e tantos outros. E dei-me por satisfeito. A minha segunda plaquette, Rondas Noctur­ nas, teve elogios da Critica, e o eminente Sr. José Veríssimo chegou a adiantar que o symbolismo havia trazido aproveitamentos reaes para a expressão da nossa sentimentalidade. Exultei... Este é, por emquanto, o meu livro bem amado, mais delicadamente feito, ainda mais trabalhado e mais perfeito.

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O MOMENTO

LITERARIO

Orgulho-me de o ter publicado e sinto nelle, deliciosamente, num destaque proeminente, toda a minha individualidade literaria. De todos os meus sonetos o que eu mais amo, o que mais me orgulha, é a « Sombra », e não posso deixar de destacar também essa trilogia da « Fé, Esperança e Caridade » e a « Insomnia ». José Verissimo deu as honras de uma cita­ ção ao « Sonho » e Medeiros e Albuquerque ao « Mar ». Na composição deste meu pequeno livro gas­ tei um anno, o que prova, João, o cuidado e o carinho com que tratei de fazel-o... Não cito versos, porque, como bom pai, adoro todos eiles. Para maio preparo o meu terceiro livro, todo um poema intimo de meiguice e sentimento; é a historia da minha vida solitaria de hoje, inspi­ rada na delicadeza de um convivio docemente sentimental das Arvores e do Mar, do Amor e meus Filhos. Dei-lhe onome simples de « Historias do meu Casal » e vai ser, espero, o meu melhor livro... A tua terceira interrogação tem ares de these a desenvolver. E profunda. Não me animo a respondel-a; como já disse lá acima, demanda erudição e uma serie de aptidões philosophicas que o meu modesto espirito pacato não comporta. O

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Mando-te, sí quizeres, com boas recommendacões, ao alto Saber do nosso Instituto Historico, onde dormem todas as capacidades nacionaes na especie. Entretanto, deixa que te diga, João, que é de franco e deplorável estacionamento a nossa actualidade literaria. Estamos a espera que a Idéa Nova nos chegue pelos próximos trans­ atlánticos francezes. Não ha lutas, João, nem « literaturas rivaes que se engalfinham ». Com a morte de Cruz e Souza, o symbolismo enfraqueceu consideravelmente. Os iyricos desappareceram... do mundo, e sí por ahi ainda algum existe, dorme commodamente na doce paz de um emprego publico, sonhando apenas com o regalo das aposentadorias. Dominam, portanto, ainda, com toda a sua gloria, os parnasianos. Felizmente, ainda não nos veiu assombrar essa exquisita especie de literatura de que falas (romance social, poesia de acção). Deve ser detestável. Toquemos de leve no quarto quesito. Não conheço as literaturas estadoaes, como não creio na sua influencia para a formação de esco­ las especiaes. Em todo o caso, como estamos num regimen federativo... Ultimo quesito : João, a imprensa, no Brasil, é um péssimo O

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O MOMENTO LITERARIO

factor para a arte literaria, principalmente depois do desapparecimento dos dous únicos jornalistas brasileiros para quem o jornal não era simplesmente uma industria— Ferreira de Araujo e este amado morto de hontem—José do Patrocinio. Só a critica, mas a critica dos considerados, encontra a complacencia de um agasalho na nossa imprensa diaria. O jornal de hoje tem o seu precioso espaço dignificadoramente occupado pelo commercio, pela politica e pela industria, e não pode cuidar dessa estranha cousa inútil e massadora que é a Arte literaria. Não é, Joño? — Do teu, Mario Pederneiras. » Vê-se que o Sr. Mario Pederneiras, além de ser dos mais justamente admirados, admira-se também com a conviccão e a certeza dos verdadeiros artistas. O

RODRIGO OCTAVIO

O Sr. Rodrigo Octavio, da Academia de Lettras, escreve-me a seguinte carta : « Meu caro João do Rio.—Minha formação literaria... Mas, eu não sei mesmo si tive uma. Em nossa terra, salvo excepções que se con­ tam, as letras ficam no dominio do dilettantismo. Muitos de nós, os chamados homens de letras brasileiros, mas realmente, na generalidade, professores, empregados públicos, advogados, jornalistas, muitos de nós, eu mesmo talvez, poderiamos ser, na França, por exemplo, homens de letras no sentido preciso, restricto da expressão. Aqui, ainda o não somos e não será possível sel-o emquanto a literatura não fôr uma profis­ são, um meio de vida remunerador e eonfessavel. Por emquanto é uma occupação segunda, trabalho para as horas vagas, para o tempo que nos deixam as lides de nossa occupação normal e principal.

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O MOMENTO LITERARIO

Assim, entre nós a producção literaria, em sua maxima parte, é antes o fructo da satislação subjectiva, de uma necessidade de espirito do escriptor, do que do accentuado desejo, da in­ tenção decidida de fazer um livro, de compôr um trabalho que se destine á leitura dos outros e vise o pagamento do editor. E em tal conjunctura não é possivel a gente que se occupa de letras no Brasil orientar a producção literaria por um caminho seguro, por uma feição definitiva. Vive-se aqui a ensaiar, a experimentar, tentando-se todos os feitios, amoldando-se a todas as escolas. Pela minha parte esta é a sensação que tenho da vida literaria brasileira. Animado, desde bem louros annos, de um decidido amor pelas letras, tive por sonho dou­ rado de minha meninice o desejo de « fazer um livro», de ter o meu nome impresso em peque­ nas letras de ouro nas lombadas de marroquim, enfileiradas nas estantes ao lado de outros e outros. E tal sonho, antes mesmo que o meu espirito juvenil pudesse discernir a significação das cousas, me fez passar horas perplexas, de­ liciosas horas, na leitura inconsciente dos fron­ tespícios dos livros da bibliotheca de meu pai, á escolha do assumpto de que me havia de occupar um dia, do titulo do— « meu livro », vacillando entre Oração da Corôa, Apostillas de

RODRIGO OCTAVIO

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Praxe, Noite na ern b a T , conforme as palavras me cantavam ao ouvido, ou a disposição dos typos me fallava aos olhos, e essa ingênua pes­ quisa embaladora me desvendava, suggestiva e mecanicamente, os mal definidos horizontes de tantos mundos desconhecidos, mas, por isso mesmo, fascinadores, irresistiveis. Os annos passaram sobre esse sonho pueril; os—meus livros vieram, que jamais se me apagou do espirito o fogo sagrado; o meu nome foi impresso nas ambicionadas pequenas letras douradas nos lombos de marroquim, mas esses livros não satisfizeram o sonho ardente dos meus primeiros annos. Outros títulos, outros horizontes, outros mundos continuam a passar dentro de mim nas minhas horas de contempla­ ção interior, e surgem e se accentuam e se des­ dobram, mas passam e fogem e se apagam, sem que o titulo seja aproveitado, sem que o mundo seja explorado, sem que o livro seja feito, einfirn. Bem eu sinto que sí eu pudesse ser um ho­ mem de letras, sí a minha preoccupação prin­ cipal, sí não exclusiva, fosse a difllcil arte da palavra, bem eu sinto que essa muda revoada de ideaes não me deixaria apenas o amargo resaibo de uma illusão perdida, de uma visão des­ feita, de um sonho apagado num acordar dolo­ roso... Mas as contingências da vida que me tem sido dado viver desfazem a proficuidade desse labor,

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O MOMENTO LITERARIO

no qual, sinceramente o digo, veria com prazer chegar o cansaço e a velhice, porque os veria chegarem com a consciencia de haver vivido a o intensa e fecunda vida do meu sonho irrealisado. Mas, tudo é vão e inútil : pois, em meio do torvelinho e das preoccupações de actividade profissional, que nos requer todos os dias e todas as noites, é inútil qualquer tentameri, qualquer esforço é vão. Os livros que tenho conseguido escrever são o resultado de uma favoravel serie de circ*mstancias opportunas. Muito maior, porém, é o numero daquelles que não consegui escrever; e ahi certamente é que está, ou que estaria, ou que devia estar minha obra. E possível que eu ainda a venha escrever um dia; receio, entretanto, que quando possam chegar esses dias de despreoccupação material da existencia, o fogo esteja extincto e a impo­ tencia venha conturbar os derradeiros lampejos de uma vida esteril. Por hoje sou, e o tenho sido desde que a minha razão se formou, magistrado e advogado. Nos meus primeiros annos, da academia ao casamento, que me trouxe a consciencia das minhas responsabilidades, nos meus primeiros annos, fiz versos, nem creio mesmo que hou­ vesse feito alguma-outra cousa com seriedade. Fiz versos e escrevi o , uma novelía que ninguém leu nem conhece, mas que é o

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RODMGO OCTAVIO

meu livro mais significativo e mais meu. De então para cá a minha obra, quer na factura, quer no sentimento, quer na respiga do as­ sumpto, resente-se das circ*mstancias atropel­ ladas em que tem sido feita. Aqui, onde a gente começa tão cedo as graves funcções da vida publica, a literatura passa desde logo a ser uma oecupação de segundo plano. Assim foi commigo, sí bem que a principio não fosse assim. Como disse, não tinha pensa­ mentos que não para as rimas de meus sone­ tos, para os hemistichios de meus alexandrinos. Vivia com elles, com elles ouvia as lições dos mestres no velho mosteiro da Paulicéa, com elles ia aos meus passeios de noctivago impe­ nitente, a que não fazia móssa a fria garôa cíassica de S. Paulo. Poetas foram os primeiros companheiros do meu espirito. Na já referida bibliotheca de meu pai, minha segunda phase, depois que passou a preoccupação pueril da escolha dos títulos para « minha obra »,—minha segunda phase foi de leitura apaixonada de versos. Alli eu en­ contrei toda a opulenta flora do espirito brasi­ leiro, desde o Gonzaga, da Marilia, até Castro Alves, da Cachoeira de Paulo Affonso. De tan­ tos, porém, Alvares de Azevedo, no verso como na prosa, foi o que mais fecunda impressão me causou. '

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Minha primeira feição, inteiramente inedita e infantil, foi byroneana. Por esse tempo meu pai me deu, premio de um exame distincto, os tres volumes do theatro de Schiller. Depois, no anno seguinte, a esses volumes vieram juntar-se os quatro tomos expur­ gados de uma traducção portugueza das Mil e uma noites. E essas leituras abriram no meu es­ pirito uma perspectiva extraordinariamente brilhante de phantasia e de sonho. Jámais deixei de ler essa obra estupenda, posterior­ mente, em edições outras que obtive, e ainda boje a releio, já agora na primorosa traducção directa do arabe e cruamente litteral do Dr. Mardrus. Escrevi então meia duzia de dramas e ro­ mances, cheios de agitação, pavorosos, extra­ ordinarios... Mas, tudo isso passou, e essa feição primeira do meu espirito ficou ignorada para os homens, que nada perderam com isso; tudo passou, e a physionomia com que me apresentei ao mundo foi o calmo e composto aspecto de um parnasiano. Sí eu pudesse ter continuado a evolução na­ tural de minha tendencia literaria, teria ficado no terreno da íiccão, fundamente romântico na essencia, cuidadosamente parnasiano na factura. O impulso que eu trazia teve, porém, de se deter ante barreiras cada vez mais temerosas, e *>

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RODRIGO OCTAVIO

que, ai de m im ! começaram a surgir desde os meus claros vinte e um annos de idade. A absorpção não foi, entretanto, pacifica : houve tremenda luta entre as correntes oppostas. Aos 24 annos, eu já havia escripto uní ar­ tigo de fundo para o Jornal do Commercio, e em sexta-feira da Paixão, e havia assionado uma sentença de morte, como juiz de direito in­ terino da comarca da Parahyba do Sul. A luta estava, pois, no mais intenso, quando, por esse tempo, o casamento, satisfazendo-me os impulsos do coração, normalisando-me a vida, creando-me as alegrias tranquillas do lar, o indefinivel goso da paternidade, completou a obra da conquista. A lyra calou. Le bonheur lúe le poète, disse algures Balzac, esse grande conhecedor da co­ media do mundo, e em mim o poeta morreu. Quanto fiz de então para cá é obra do paciente amador de alinhar palavras, e essa mesma feita quando outra cousa de obrigação lhe não dis­ puta os momentos de melhor disposição para o trabalho. E mais não tenho que lhe dizer, meu caro senhor. » ’

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INGLEZ DE SOUZA

O Sr. Inglez de Souza, auctor do manda-me a seguinte carta extremamente curta : « Cumprindo as suas ordens, respondo aos quesitos da circular que teve a gentileza de enviar-me. Io.—Os auctores que mais contribuiram para a minha formação literaria foram Erkmann* Chatrian, Balzac, Dickens, Flaubert e Daudet. 2o.—Das poucas obras que hei publicado, pre­ firo o Missionário, ainda que a sua factura nao corresponda ao meu modo actual de ver e sen­ tir a natureza. O Missionário é espesso e palavroso¡ tem, pelo menos, cení paginas a mais. Todavia ainda hoje escreveria alguns capítulos, como oda viagem do Padre, o dia doNico Fidencio, o enterro do Totonio Bernardino. 3o.—A este quesito só podem responder bem os que se entregam á critica literaria, cousa de que Deus me defenda. Como amador de li­ teratura penso que é o lyrismo a fórma que ha de predominar na poesia, e ao romance já agora

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INGLEZ DE SOUZA

é impossível tirar a preoccupação social que está em todos os espíritos. Para falar com fran­ queza, considero secundaria esta questào de escolas em arte : não chego mesmo a estabelecer outra distincção entre os trabalhos literários si não a de ter ou não ter talento o sujeito que se mette a escrever para o publico. 4o.—E possível, com o tempo, quando a federação tiver creado verdadeiros Estados e os Estados se tiverem tornado nações. Por emquanto, não conheço nada mais pare­ cido com o brasileiro do norte do que o brasi­ leiro do sul. Não partilho da opinião do Sr. Assis Brasil sobre as diíTerenciacões ethnicas produzidas pela farinha de mandioca e pelo churrasco. 5o.—Fazer literatura e fazer jornalismo são cousas diversas, como fazer architectura e fazer engenharia. Está demonstrado que se póde ser optimo jornalista sem saber ler nem escrever. Em com­ pensação, ha redactores de periódicos que se contam entre os melhores literatos. Também ha directores e amanuenses de secretaria, escri­ vães e outros rabiscadores de papel, que são excellentes poetas e grandes romancistas. O que não quer dizer que a burocracia seja bom factor para a arte literaria... » E, como se vê, curta, mas cheia de idéas. O

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ROCHA POMBO

O escriptor paranaense Rocha Pombo, em geral tão prolixo, vence porém, o record da sobriedade. Parece quasi impossivel que seja este o Rocha Pombo do No Hospicio e de alguns artigos, em que as revistas põem de vez em quando—continúa. 0 romancista manda-me numa tira de papel almasso, cortada em tres pedacinhos, o seguinte : Io.—A Biblia, principalmente os Evange­ lhos; Homero, Virgilio, Dante, Milton, Carlyle, Hugo, Goethe, Klospstock e alguns outros mais; Vieira, Herculano, etc. 2o.—Das minhas obras eu prefiro as que não escrevi ainda. Sí me instigar a destacar alguma cousa dentre as que tenho escripto— ahi está: gosto mais de alguns dos meus con­ tos, de algumas paginas do No Hospicio e de um poemeto ainda inedito. 3o.—Não se pode dizer que atravessemos um periodo estacionario : creio antes que a obra desta geração vai ser uma das mais fartas e

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POMBO

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notáveis de toda a nossa historia literaria.— Não vejo escolas delimitadas : apenas tenden­ cias mysticas em alguns, e noutros, no maior numero talvez—a velha concepção naturalista da arte. Dou mais, muito mais, pelos primeiros. 4o.—E tão insignificante o movimento lite­ rario nos Estados que não acredito na possibi­ lidade de se formarem literaturas á parte. De mais : ainda quanto á actividade intellectual— o Rio de Janeiro continuará a ser por muito tempo o Brasil. 5°.—Para os jornalistas de profissão—o jor­ nalismo é um grande mal em toda parte. É o mais que se póde dizer. Para a arte literaria, porém, a imprensa é um grande factor de pro­ gresso, pois estimula esforços, revela aptidões, destaca os mais capazes de vencer.

LAUDELINO FREIRE

O Sr. Laudelino Freire escreve-me a seguinte carta : « Illustre Confrade. Satisfazendo o seu desejo, aqui lhe dou as respostas que me pede : I /

As minhas primeiras leituras, na época em que estudava preparatorios (1885-1890), foram feitas em almanaques, selectas e pequenos manuaes encyclopedicos, de que me resultaram os primeiros conhecimentos com os auctores nacionaes e portuguezes mais em vóga. Recordo-me do enthusiasmo, ainda hoje conservado, com que lia e decorava as poesias de Castro Alves, Gonçalves Dias, Alvares de Azevedo, fa*gundes Varella, Tobías Barreto, Casimiro de Abreu, Guerra Junqueiro, Thomaz Ribeiro... Estudante de philosophia, preparatorio então exigido, comecei a estudar Barbe e Pelissier, sentindo mais se me despertar o gosto pela li-

LAUDELIXO FI5EIKE

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teraturacom as lições do padre Honorato, livro que sobraçava na aula de rethorica; com o Curso de literatura, de Mello Moraes Filho; com os romances de José de Alencar, os, Mise­ ráveis, de V. Hugo... Depois as minhas leituras se foram voltando para João Ribeiro, cujas grammaticas acabavam de apparecer; Sylvio Romero, que se tornára mestre com a publicação da historia da litera­ tura brasileira, Tobias Barreto, C. Castello Branco, Eca de Queiroz, Alexandre Herculano, Ruy Barbosa, Theophilo Braga, Taine, Spencer, Buckle, Montesquieu, Kant, Comte...

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Dou preferencia ao capitulo segundo do livro intitulado—Sylvio Roméro;ao estudo s titulo de um critico, do livro— Um Critico e um p oeta ; e os ensaios—Intuição Scientifica da Historia.

III Quanto á prosa no Brasil, é assignalavel não pequeno progresso nos últimos annos. Observase presentemente bem pronunciada tendencia para o apuro da lingua, salientando-se nessa propaganda os nomes de Ruy Barbosa, Heracl*to Graça, João Ribeiro, Cândido de Figueiredo e outros.

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Póde ser indicado o nome de Pacheco Junior, o ultimo, chronologicamente falando, dos velhos mestres, como o iniciador de uma phase intei­ ramente nova para a philologiaindígena, impri­ mindo-lhe uma orientação muito diversa da que até então era seguida—orientação que foi largamente firmada por Julio Ribeiro, João Ribeiro, Maximino Maciel, Alfredo Gomes e outros fframmaticos de nota. O Ao meu ver, os melhores dos prosadores actuaes são—Ruy Barbosa, Carlos de Laet, Ma­ chado de Assis, Coelho Netto, João Ribeiro, Medeiros e Albuquerque, Alcindo Guanabara, Olavo Bilac, Artliur Azevedo... No romance nada de novo observo, no momen­ to actual; nenhuma movimentação de idéas ha que se traduza em escolas definidas. Apenas vagas aspirações para o romance social, que só mais tarde, com uma maior acceitação das cor rentes socialistas que convulsionam as socieda­ des europeas, poderá fructificar entre nós. Con tinúo a preferir os velhos romancistas—Macedo, Alencar, Machado de Assis, Taunay, Aluizio... — ao que actualmente surge sob as fôrmas apparentes de idéalisações humanas e sociaes. Na poesia é incontestável o nosso estaciona­ mento. Os mais notáveis representantes da poesia actual ainda pertencem a essa geração de poetas que, nascidos ha pouco mais da me­ tade do século findo, começaram a vicejar dos

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últimos annos da decada de 1870 em deante. Geração que despontava para o encontro de novas formas de esthetica, que em França surgiam e repercutiam entre nós, cabia-lhe manter a elevação dos últimos románticos, sem quebra de continuidade, ou sem interromper a ligação existente entre as cousas successivas, como diria Taine, verificando um dos elemen­ tos da sua lei das condicões. Era com eífeito um grupo que irrompia forte e vigoroso pelo ta­ lento, do qual outros poderiam ser indicados além de—Arthur Azevedo, Fontoura Xavier, Corrêa de Azevedo, Theophilo Dias, Baptista Massena, Augusto de Lima, Mucio Teixeira, B. Lopes, João Ribeiro, Alberto de Oliveira, Cyridião Durval, Affonso Celso, Raymundo Corrêa, Martins Junior, Luiz Murat, Xavier Marques, Rocha Filho, Cruz e Souza, Adolpho Caminha, Theotonio Freire, Francisco Lins, Olavo Bilac, Adelino Fontoura, Alexandre Fer­ nandes, Guimarães Passos, Emilio de Menezes, Bento Ernesto Junior... Estes nomes garanti­ riam á poesia o mesmo vigor, a mesma exube­ rancia com que ella vinha revestida, sí não lhes fosse dado surgirem precisamente num mo­ mento de temerosa crise para a arte, que se sentia sacrificada ao surto de correntes varias e indecisas, de escolas não definidas, de em­ bates mal dirigidos e extravagancias curiosas. O idéal artístico resentira-se em meio de tanO

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tas lutas e reaccões desencontradas, e a arte em si mesma muito perdera do que lhe é condição essencial—a sinceridade. E dalli as manifesta­ ções contrafeitas e desvirtuadas. Não é fácil definir as feições literarias pos­ teriores ao romantismo ; mas só o tentássemos, buscando os sentimentos que os inspiraram e as causas ou idéas apparentes que as justificam, talvez bem pouco apurássemos da sinceridade delias. Os seus actuaes representantes, esses que se intitulam parnasianos, realistas, natura­ listas, scientificistas ou mysticos de qualquer especie, peccam por essa mesma falta de since­ ridade do idéal que os possa conduzir. Conse­ quência talvez mais decorrente da propria crise que a poesia atravessára nos ardores da reacção contra o romantismo, do que da falta de apti­ dões e qualidades dos novos cultores, o que fica plenamente evidenciado é a inferioridade crescente da nossa producção poetica. E não será temerario affìrmar que, á medida que a poesia se distancia do derradeiro período ro­ mantico, menos valiosos se vão tornando os seus productos, menos bellos os seus cantores, e mais incomprehensiveis e obscuros os seus pensamentos. é

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IV Não observo semelhante tendencia, e julgo

LAUDELINO FREIRE

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diííicil a formação de literaturas á parte entre nós. Devo lembrar, entretanto, a tentativa de Franklin Tavora para crear a Literatura Norte, cujos moldes não podem ser, segundo lhe parecia, os mesmos em que vai sendo vasada a literatura austral que possuímos. Norte e Sul, dizia, são irmãos, mas são dous. Cada um ha de ter uma literatura sua, porque o genio de um não se confunde com o genio do outro. Cada um tem suas aspirações, seus interesses, e ha de ter, sí já não tem, sua po­ lítica. Devem também ser lembradas a espiritual, do Ceará, e a 0/Jicina dos Novos, no Maranhão. V 0 jornalismo não deixa de ser um íactor im­ portante para o desenvolvimento literário. No Brasil, porém, as condições do meio ainda não permittem que a imprensa consagre á litera­ tura o apreço que fôra para desejar.»

MAGNUS SONDHAL

— ... « Assim te amaldiçoaram os Covardes, na tua sublime Dor!... E só quizeram ver-te quando alegras—a Vida,—como fulgor do teu Sorriso !... Mas, Tu és somente Amor !... A Vida!... o palpitar desse Universo, immenso e sideral!... O palpitar do Lhôma, na Materia que se tornou sensível ou que , na Cellula que é a Synthese do Kosmos!... A Vida!... o doce e desejado Encanto de ter Consciência, e de sentir-se em torno!... Um Bem-Supremo ou uma Desgraça summa !... Oh ! como é doce a Vida, ou quanto amarga!... Porque é que a Vida amarga e infelicita?!... —Porque inda ha Morte e as Esperanças ruem !... Quando é que a Vida é doce e desejável?!... Quando Justiça e Amor eterna a fazem!.. O

E Su n pensou !... E assim falou s i n -

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O mysterioso hierophanta Magnus dava-me nesta noite a honra de ouvir a sua grande obra

MAGNUS SONDHAL

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inédita Assim falou Sin-úr.—Como euo fosse pro­ curar, no meio do gabinete loiro e satanico, o magico desembrulhara o manuscripto e dissera : — Dou-te para exemplo concreto o quarto ca­ pitulo desse poema em prosa, cuja epigraphe é .4 Vida. Já dez horas tinham batido nas torres das Igrejas. Magnus Sondhal é o nosso sar Peladan, o escriptor complicado, cheio de palavras exóticas. Na sua mesa ha seis qualidades de tintas, desde o vermelho carmim á côr de violeta : em cada tinteiro uma penna descansa. O hierophanta es­ creve como um pintor : Tudo é delicadeza de sensação, assombro, incognoscivel... Logo que acaba de ler a ode nietzscheana da vida, Magnus limpa o pince-nez e fala com um ar de regato tranquillo : —Confesso que me sinto em serio embaraço para satisfazer aos teus quesitos, maximé quanto a segunda questão, não só pelo modo—geral —por que são formulados, como também, e principalmante, pelo facto de se referirem a as­ sumptos mais relativos á Erudição do que á In­ venção. No emtanto sou obrigado a dizel-o—embora, no meio actual deponha contra mim!—que sou puramente, um— c r e a d o r , tendo posto fóra toda a minha velha Erudição como Bagagem inútil e incommoda. 14 .

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Começa o assombro. Curvo-me. O Mago con­ tinúa : —A minha formação literaria, artística e philosophica foi, em rigor, um resultado directo de urna excepcional Educação, fornecida por mi­ nha Mãí, um typo superior—uma Poetiza illustrada. Esse facto contribuiu aliás, grandemente, para â minha emancipação completa de Mestres, Auctoridades e Compendios. Quando Eu me senti Homem com a minha Orientação e a minha Opinião formada, só tinha lbido os E ddas e os sagas dos antigos Nórskos. Nessa época, aos 21 annos de idade, escrevi o meu primeiro trabalho, do qual nunca terei de me envergonhar, e que tem por titulo : O cam inho da v e r d a d e , , que começa quasi com as mesmas expressões e as mesmas phrases da Divina Comedia de Dante, Obra, no emtanto, que Eu absolutamente não conhe­ cia ainda. Depois disso é que li as principaes Epopéias de Humanidade, preponderando no meu Espi­ rito a influencia da Literatura Oriental, princi­ palmente da índia e do Egypto. Oh! homem bizarro! Eu falára com alguns membros da Academia. Tinham quasi todos co­ meçado no « Panorama! » O formidável Creador começava como um Dante embebido nos Sagas! Com a voz tremula de arrebatamento inquiri : O

MAGNUS SONDI!AL

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—E tem um tão orgulhoso amor pelas suas obras ? —As minhas Obras, não posso citar, como tendo verdadeiro valor literário, nenhuma daquellas que foram publicadas em Revistas, Li­ vros ou Jornaes, embora algumas já tenham merecido traducção para línguas estrangeiras : O Amor Livre, e a Prehistoria, por exemplo. No emtanto, sou um Reformador, não só da Literatura, mas até da própria Linguagem. Houve uma pausa. O Reformador continuou : —No Curso de um dos Discípulos actuaes de U niversidade acaba de traçar as Normas principaes dessa Reforma. É isso pois uma Realidade já, embora não sejam essas novas Theorias co­ nhecidas ainda do Publico e dos Literatos, es­ pecialmente. Não tenho preferencias por cousa alguma do q u e já fiz!... Nisso, como em tudo mais, Eu só dou preferencia áquillo que não fiz! No emtanto, das minhas Obras ineditas a que me parece melhor é a que tem por titulo : « As­ sim fallou Sin-ur » de que já te li esse palpitante trecho da « Vida ». A Literatura, aqui ou alhures, não póde ser sinão a Expressão do Estado Mental de uma certa Epocha ou de um Periodo de Evolução, de uma certa Phase Social, na qual prepondere uma de­ terminada Corrente de Idéas. Dada essa definição, e essa condição, para á

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existencia de lima Literatura digna desse nome, é fácil reconhecer que, nem no Brasil, nem no Occidente, se constituiu ainda uma verdadeira Norma Literaria, visto como não se formou ainda uma Escola Philosophica, geralmente acceita, capaz de inspirar, orientar e dirigir as Concepções e Sentimentos dos que produzem e dos que interpretam. Achamo-nos em um periodo de efervescencia, de decomposição e até mesmo de D egenerescen­ cia profunda. Não falo isso com o espirito pessimista dos D e g e n e r a d o s !... mas com a certeza e cção de um Philosopho e as sympathicas Espe­ ranças de um Reformador. Si houvesse hoje Literatura, já não digo quanto ao Estylo e á Fórma, mas quanto á Inspi­ ração philosophica, essa Literatura não poderia ser sinão christã; e isso por uma boa razão :— que o Christianismo ainda prepondera como Fonte da I dèogenia S ocial. As sem*ntes da bella Revolução Hodierna estão semeadas, mas o terreno em que foram lançadas é ainda estéril, porque os últimos ba­ fejos das fogueiras christãs ainda vêm crestar as plantinhas tenras, e os novos rebentos do poético Yggdrasil. Não deixei de suspirar baixinho. As planti­ nhas tenras e crestadas enterneciam. O grande homem foi grato a essa prova de delicadeza. d

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—Coma um biscoito, João! Acceitei. Elle mastigou e de novo arremet­ e u contra o catholicismo. Dante imaginou que tivesse cantado os últimos luòres da civilisação christã. Em vez disso, poíém, forneceu novos argumentos em favor das phantasias tresloucadas dos doutores da Egreja e dos Crentes acarneirados, que encontraram, na sua (Jonicdíci, uma descripção positiva das£/'c,y Regiões da moradia celeste das Almas dos que morrem. A prova palpavel da fatal preponderancia bru­ tal do christianismo dos Ignorantes é o facto de conservar-se em quasi todas as referencias pe­ riódicas a contagem das datas segundo a Era christã. E a prova do mallogro da Grande Revolução Franceza é justamente o facto de não ter podido preponderar a nova Era, e a reforma racional do Kalendario. Com estas allusões apparentemente desfavorá­ veis aos christãos e ao christianismo Eu, de modo algum, pretendo hostilisar, quer á Dou­ trina, quer aos seus Adeptos. O Christianismo representou em outros tem­ pos uma necessidade social, e a sua utilidade então foi incontestável. Como tudo, elle também passa!... e, de facto já passou. Quem pois, hoje, quizer conservabo nao faz mais do que infec-

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donar a Sociedade com um Cadáver em decom­ posição ao ar livre ! Ninguém, porém, é livre de sentir, ou de sar ! O Sintarismo, a Nirvanação, a Heredita­ riedade, a Educação, a Suggestão e a Magia collectiva :—eis o Determinismo e o Fatalismo, que rege o D estino do Individuo e da Socie­ dade!... Cada Cyclo Revolucionario é sempre coroado por uma E popéia, como o cyclo annual ou ger­ minal de uma Planta é coroado por flores e FRUCTOS. Por isso, na passada civilisação manica encontramos os inimitáveis monumen­ tos Literarios, como o Ramayana, os V edas, o Mahabbárata a Sakúntala, e tantos outros. Os Povos Norskos, ou os Gôdos, syntbetisaram a sua Evolução na esplendida Epopéia philosophica :— O s E ’ ddas. O s Egypcios tiveram as suas Obras de Hermes e o L ivro dos M ortos. Os Cbinezes tiveram o seu Confucio; os Persas, o seu Zarathustra; os Hebreus, o seu Salomão; os Gregos, o seu Homero; os Latinos, o seu Vir­ gilio, o Mestre do Dante. E assim sempre tem cada Cyclo de Evolução e de Revolução o seu Representante suprêmo. Em todos os ramos do Progresso Humano, ba Phases e Cyclos distinctos, os quaes se podem categorisar, por— Cyclos de E volução, C yclos de R evolução, e Cyclos É picos. Assim preparei a possibilidade de satisfazer

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a tua pergunta sobre o momento Literário, no Brasil, caracterisando o seu estado actual e as suas condicões evolutivas. Todos sabem que a civilisação preponderante na America e na Vinlandia ( do Norte) é um prolongamento, ou uma ramificação, da civi­ lisação Européa. Quanto á Construcção Literaria dictam por­ tanto as Leis :—na Vinlandia, Shakespeare : e na America, o Camões e Cervantes... Abri a bocca aterrado! Evidentemente Magnus dizia cousas admiráveis, e tanto as dizia que parecia não acabar mais. Limitemo-nos agora ao Brasil! Preponderando, embora, entre nós a influen­ cia lethifera do velho Christianismo, achamo-nos em condições muito superiores, para poder evo­ luir em Espirito, aos Povos, industrialmente mais adeantados da Vinlandia, ou da America Ingleza, só pelo facto de predominar, entre nós, o Christianismo Romano, em vez de nos ter infelicitado qualquer das detestáveis chamadas P rotesta n tes, as quaes, em geral, só concorrem para prolongar a lenta agonia dessa lugubre Doutrina da Mórte! Echôou mui debilmente no Brasil a benefica Influencia da Grande Revolução Franceza. Mas, as ultimas notas desse bello Hymno de Reivin­ dicação Libertaria ainda echôaram por estas plagas, inspirando novos Ideaes e revitalisando

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a Alma Nacional. Essas notas são resumiveis em tres nomes : — Comte, Buchner, Spencer; e em tres Escolas Pliilosophicas : — o Positi­ vismo da França, o Materialismo da Allemanha, e o Evolucionismo Inglez. Por causa da Propaganda Orthologica, mal interpretada, tendem hoje a influir, de um modo crescente, as Escolas Esotéricas, entre as quaes se destacam: — 0 Occultismo da India, o Hermetismo e o Esoterismo do Egypto, o Kabbalismo Hebraico, a Theosophia Occidental, e, finalmente, o Mentalismo Vinlandico, ou da America Ingleza. Essas bellas e interessantes Escolas Metaphysicas e Mysticas são destinadas a destruir todas as teias de aranha dos Cerebros christãos, pois que representam, de facto, a base sã e Esotérica do proprio Christianismo. Elias vêm, ao mesmo tempo, fazer uma limpeza atmos­ pherical desterrando para a Lua o pobre Espi­ ritismo de Swedenborg e de Alian Kardéc, que tantos Espíritos sãos tem desorganisado, nesta terra. No emtanto, para que se inicie e se caracterise um verdadeiro Periodo Literario é mistér que, tanto essas Escolas de influencia capital como as outras, quaesquer, de influencia secun­ daria, se fundem em uma única Escola prepon­ derante, conciliando-se todas e harmonisandose numa Formula Synthética.

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Essa Phase nova e florescente da Literatura está prestes a surgir para o Brasil. Quanto ás Escolas Literarias que existiram ou que existem hoje entre nós não são ellas mais do que um Ensaio, ou Ensaios, transito­ rios, sendo algumas pueris, mas todas ephe­ meras. Ensaios! Tudo ensaios antes do Assim Sin-iir ! Achei-me profundamente pueril. Que pensa­ ria de mim o profundo mago ? Não lhe perguntei isso, entretanto. Dos meus labios, numa ancia de saber, surgiram tremulas apenas estas palavras: — E as escolas dos Estados ? —Embora o desenvolvimento da literatura, como da Arte em geral, dependa essencial­ mente de uma Educação superior, uma orientada Theoria philosophica qualquer, ainda assim a fundação e a multiplicação de centros Litera­ rios nos Estados tendem a beneficiar progressi­ vamente a evolução da Arte Literaria no Paiz. E, assim como a separação espiritual do Bra­ sil e Portugal modificou profundamente a Lite­ ratura de um e de outro paiz, differenciando-a tanto no Fundo como na Fórma, assim lambem a constituição de Centros-Literarios ou Núcleos independentes de desenvolvimento Artistico, em os Estados, tenderá adestacar e differencial* as tendencias Literarias, tanto de uns em rela«>

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cão aos outros, como em relação ao Centro Metropolitano. —E o jornalismo ? —O Jornalismo deve ser considerado como um Fermento ,Id ic sendo portanto um en éog expeliente meio de desenvolvimento da Arte, bem como dos outros ramos do Entendimento e da Actividade Humana, sí houver mais Escolha nos Assumptos, mais Independencia e mais Cri­ terio na Orientação gera!. ♦ O Mas, especialmente no Brasil, embora também nos outros Paizes, o Jornalismo tem sido um elemento de Decomposição, de Desorganisação e de Desorientação profunda. Póde-se dizer que ainda não appareceu um Jornalista independente, que fosse capaz de despresar a Rotina e a Opinião miserável do Vulgo para só tratarde implantaras suaid prevalecer a sua Opinião pessoal e livre. Para dar uma idéa do que sinto sobre o Jor­ nalismo, devo dizer que o considero, entre nós, como a M umia da Caricatura e do Escancíalo Policial. Tal especie de Jornalismo não póde ser, de forma alguma, um bom factor para a Arte Li­ teraria; mas, onde está o meio, e onde os recur­ sos de modificar esse inconveniente ? O Jornalismo, em si mesmo, não é bom nem máo, mas é utilissimo como vehiculo de Suggestões e de Idéas, boas ou más, dependendo,

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pois, do estado mental dos Jornalistas, o seu bom ou mão eíFeito social ou collectivo. Por sua vez, é o estado social que faz os Jornalistas quando não se trata de secundar a Evolução e o Progesso, mas satisfazer apenas a Opinião Publicei, esse Monstro Polycephalo ! Eu salii a pensar. O chefe da literatura occul­ tista pode ser extravagante, mas tem cousas razoaoilissimas. O jornalismo, vehiculo das simgestões, hão de convir que é admiravel.

ELYS10 DE CARVALHO

O Sr. Elysio de Carvalho representa por si só urna porção de pequenos movimentos litera­ rios, reflexos de pequenas escolas francezas. A principio, a proposito da antiga historia de um soneto, resolveram jurar que o Sr. Elysio não escrevia nada—mas o Sr. Elysio tem escripto tanto e a respeito de tanta cousa pouco conhe­ cida no Rio que forçoso foi dar-lhe attencão. O Sr. Elysio de Carvalho conta a historia do seu espirito com um prazer evidente. Lel-o é saber o que fizeram de 1897 para cá os tremen­ dos jovens nephelibatas, hoje socialistas : 1

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I Não sei, na verdade, como contestar vossa primeira pergunta. Não me será fácil assignalar quaes os auctores que mais influiram na formação da minha mentalidade, porque, no começo da minha carreira literaria, li muito, mas muito, e lia tudo quanto vinha da Europa, Paris, e sobretudo os novos. Era um desespero.Conta-nos

ELYSIO DE CARVALHO

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a chronica pathologica que,’ao entrar na puber­ dade, ha meninas que comem carvão e cal das paiedes: eu devorava brochuras francezas. Essa leitura continua, variada, superficial, sem methodo, junto com exercidos enfermos da vontade, atropellou de alguma forma meu systema ner­ voso. E o que é interessante é que lia mais para satisfazer minha vaidade de homem lido do que para encontrar um alimento necessário para meu cerebro, destituido de ideas e de sensações estheticas. Sem embargo, essa mania, que logo passou, foi útil: convenci-me de prompto da superfluidade da literatura franceza contempo­ ránea, e immediatamente procurei leituras mais solidas. Supponho que não tratais de saber todas as obras que li, senão daquellas que mais accentuadamente contribuiram para minha educacão esthetica e philosophica, que transformaram meu modo de ser, que me abriram novos horizontes t perspectivas novas, que me revelaram novos valores das cousas. As tragedias de Eschylo e de Sophocles agradaram-me immensamente, como me enthusiasmaram muito a Historia dos Cesares, de Suetonio, e o de Petronio. Li e leio continuamente as maximas de Epicteto, Helvetius, Champfort e La Piochefoucauld. Co­ nheço muito superficialmente a literatura clássi­ ca. Zola, escriptor que eu detestava e combatia... sem nunca o ter lido, empolgou-me de emoção.

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Foi elle quem despertou em mim o desejo de uma arte mais sã, mais humana, mais con­ forme com a natureza : dahi a minha adhesão ao movimento naturista que em França iniciára Bouhélier, cujas ideas procurei propagar e de­ fender no Brasil, publicando para isto um mani­ festo e uma revista. Zola, interpretado pelos naturistas, foi um dos espíritos que mais influi­ ram na minha primeira formação intellectual, mas essa influencia não persiste, e creio mesmo que elle hoje não me satisfaz. Prefiro Mirbeau e An atole France, os mestres admiráveis do romance moderno, ao chefe da escola naturista: nutro por Mirbeau, o auctor de tantas obras primas da literatura revolucionaria, uma viva sympathia. Emile Zola foi ainda o meu iniciador nas idéas de reforma social. Os seus romances, principalmente Germinal e , deram-me uma triste idéa da sociedade actual, revelaram me os crimes e os vicios da burguezia, fizeramme odiar a política e os políticos profissionaes, mostraram-me o soífrimento dos pobres e os tormentos das classes proletarias, victimas da torpe exploração do homem pelo homem. Comecei então a ler os escriptores socialistas, e principalmente os anarchistas, com quem aprendi verdades que jamais esquecerei e que procuro tornar conhecidas dos homens :—que o individuo é a medida de todas as cousas; que o homem é ingovernável, é para si sua única

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realidade, seu fim e seu todo; que todo poder é um absurdo; que a propriedade é um roub.o; que o Estado tem seus alicerces no crime e só é mantido pela violência; em summa, que o mundo da iniquidade e do roubo, onde a des­ igualdade faz do soflrimento do maior numero o poder dos plutocratas e dos dirigentes, será fatalmente substituído por um mundo novo, S o !c i.0 0 6 S sociaes serão fundadas, não mais sobre a rotina e a arbitrariedade, mas de accordo com as leis do viver inteorral e a diffniO {[3 dade humana, visto como a historia marcha para a anarchia—ideal que não é, como pensam os reaccionarios e os laboradores do obscurantismo, um sonho de loucos, mas um phenomeno que a sciencia constata como innato na natureza e uma idéa organica no homem, ideal que será a victoria final da vida no planeta. Os escriptos de Proudhon, Bacounine, Kropotkine, Mackay, Tucker, Réclus, etc., fizeram de mim um anarchista convicto; e Buchner, Spencer, LVíIolbach, Lange, Diderot, etc., con­ verteram-me num atheu profundo. Foi por esse tempo que conheci Marcguyau, o luminoso pen­ sador francez, morto em plena primavera da vida, cuja influencia moral sobre meu espirito foi pro­ funda e salutar. A sua obra capital, o Esboço duma moral sem obrigação nem sancção, onde nos propõe como principio ideal a própria vida, « a vida a mais intensiva e a mais extensiva pos-

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sivel sob o ponto cie vista physico e mental, a vida total sem mutilação », provocou em meu organismo uma explosão de sensibilidade e sus­ citou um novo movimento de consciência. De posse de icléas sociaes, preoccupado com os grandes problemas que se debatem na socie­ dade moderna, sabendo das excellencias do anarchismo, a unica doutrina que oííerece pos­ sível solução á questão social e a unica que sa­ tisfaz minha concepção da justiça e meu appetite de equidade, desdenhei a literatura propria­ mente dita, consagrando-me á critica e ao es­ tudo da sociologia, sciencia pela qual cada vez mais me apaixono, não só porque a considero como a base de toda a cultura moderna, como também para assegurar meu futuro e dar satis­ fação a um pendor que desde muito nutro por este ramo do saber positivo. Senti a necessidade da acção e da luta contra a mentira, a hypocrisia e a iniquidade reinantes, e lancei-me decidido, cheio de enthusiasmo e de esperanças, no movimento revolucionário, frequentando os centros operários, realisando conferencias (as circ*mstancias me fizeram orador), fundando periódicos e revistas de propaganda, minha ul­ tima tentativa tendo sido a Universidade Popular, a primeira que se funda na America do Sul, para emprehender a instrucção superior e a educação social do proletariado. Assim se fizeram—minha iniciacão e minha

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educação revolucionaria. Explico-vos este movi­ mento, porque creio que influiram muito mais na minha vida do que os livros. Também influiram na formação do meu es­ pirito: Carlde, c o m o seu Culto dos heroes; mierson, com seus Homens representativos e seus ensaios, em que exalça a personalidade humana; Rusldn. com suas theorias estheticas; Ibsen, com seu industrialismo soberbo; Gener, com as suas sábias ideas inductivas; Gorki, com seu optimismo humano e ardente, e alguns ouiros. Os ensaios de Cadile me fizeram pensar durante algum tempo. Refiro-me ao Culto dos heroes e ao Passado e presente, porque o Sartas Res ar tus, livro vasado no humorismo do for­ midável João Paulo, não pude até hoje digerir Iodos estes philosophos da vida ascendente, exaltando a individualidade, proclamando o ad­ vento de uma humanidade superior em forca, em grandeza e em belleza, visto como o pro­ gresso existe e as especies se transformam afirmando que a vida é o prazer nobre e intenso e que o christianismo, com seus valores decalentes, falsificou, deformou, corrompeu tudo quanto era terrestre e exaltava a vida, retar­ dando assim por dous mil annos a marcha as­ cendente da planta humana para o superhomem, deixaram um sulco profundo na historia da mi­ nha alma. boi, porém, o intellecto allemão o que nífluiu 15.

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mais profundamente na formação da minlia mentalidade. O phenomenalismo áo Mundo como vontade e como representação, rectificado pela philosophia nietzscheana, e a serenidade de Goethe tornaram mais luminosa a minha visão esthetica. Foi em Schopenhauer que aprendi que « urna existencia feliz é impossível, que o que o homem pode realisar de mais helio é urna existencia heroica ». Max Stirner, o auctor desse livro immortal, único na historia do pensamento, que é o Unico esua rop P , o codi individualismo e o gerador do anarchismo mo­ derno, livro que a censura achou « absurdo de mais para ser perigoso » e que mãos generosas arrancaram do esquecimento para lançar no mar vivo das controversias contemporáneas, Max Stirner e Frederico Nietzsche, este com o seu nihilismo dionyseano e com seu ideal trágico da vida, são os meus grandes, os meus maiores, os meus verdadeiros educadores, porque me ensinaram bastante a pensar, me induziram a procurar e encontrar meu eu, foram os auctores da minha emancipação intellectual. « Os teus verdadeiros educadores, diz o verbo luminoso de Nietzsche, que são também teus formadores, revelam-te o que é o sentido primi­ tivo e a essencia elementar do teu ser, qualquer cousa que não se deixa nem educar nem formar, em todo caso, alguma cousa que é de accesso diflicil, que está subjugada e paralysada; teus

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educadores não seriam capazes de ser para ti senão libertadores. » Wag joven Nietzsche, quando este não tinha ainda 25 annos, Nietzsche e Stirner foram para mim— maravilhosos educadores. Hoje, fiel á philosophia de Zarathustra, procuro pensar por conta própria, só assimilando dos mestres o que julgo I.om; procuro ser eu mesmo, com meus instinX

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Do RIO, João - Momento Literário Completo - PDFCOFFEE.COM (2024)

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